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“Quem é pobre morre mais cedo”

Não é um acaso, nem uma lei da natureza, é uma decisão social.

Que se pode dizer de um governo que, para resolver problemas de financiamento, se recusa a tributar grandes fortunas ou transferências especulativas de capital e com o fim de realizar receitas, que daquela forma deixou de obter, tributa os cuidados de saúde da sua população, através do aumento das taxas moderadoras? Dizer-se que na perspetiva de um governo que atua desta forma o capital é a realidade e as pessoas são abstrações já não representa, para muitos,novidade nenhuma. Essa é, aliás, a marca distintiva do neoliberalismo. Mas quando o neoliberalismo se estende à área da saúde, entra em determinado tipo de questões que vão muito para além da, aparente, simples racionalidade das decisões económicas ou financeiras. Em duas palavras, mostra bem o que é.

Os cuidados de saúde têm hoje um significado muito diferente daquele que tiveram no passado. Já não se trata apenas de sobreviver a doenças. Também já não se trata apenas de cuidados preventivos, tendo em vista a manutenção e maximização da capacidade de trabalho. Os cuidados de saúde estão hoje em dia ligados a uma visão muito mais ampla da vida humana. Já não são a simples garantia da manutenção da força de trabalho, são uma parte indispensável do prolongamento das expectativas de vida. Significam a possibilidade de uma vida mais longa e saudável, a promessa de uma vida que começará um dia, depois e para além daqueles muitos anos que se deram ao trabalho.

As visões do envelhecimento e das suas limitações, e a perceção da evolução da vida mudaram. Na Alemanha, por exemplo, e pois que tanto falamos agora da Alemanha, entre os 60 e os 70 anos é-se ainda novo. Aos 70 ainda se começam, muitas vezes, projetos e formas de realização pessoal que a vida de trabalho nunca deixou. Aos 80 têm-se ainda muitos interesses e aos 90 está-se ainda ativo, física e intelectualmente. O crescimento das expectativas de vida é um bem social, que não se compreende que não possa estar ao alcance de todos.

Por esse motivo, a população alemãé sensível à influência de condicionantes sociais na duração da vida humana. E, no entanto, um estudo feito para a seguradora de reformas alemãvem agora apontar para uma evolução negativa na própria Alemanha.iQuem trabalha no sector da precariedade, sujeito a condições instáveis de trabalho e a salários baixos, vive menos do que os outros, que trabalham em boas condições e com bons vencimentos.E, mais chocante ainda, as expectativas de vida de quem trabalha na precariedade, para além de serem mais pequenas do que as dos outros, estão a diminuir.

A conjugação de dois fatores, o aumento das pessoas sujeitas a relações de trabalho precário e a prestação da assistência médica cada vez mais dependente do nível de rendimento, leva a que, embora as expectativas de vida cresçam, as pessoas que trabalham em condições precárias tenham, mesmo na própria Alemanha, hoje em dia, em média, uma expectativa de vida sensivelmente mais reduzida que há dez anos. O provérbio “quem é pobre morre mais cedo” não se alterou até hoje no essencial, nas palavras do professor e investigador especializado na questão da pobreza Christoph Butterwegge. E diz ainda Butterwegge: a relação de trabalho normal está, de forma crescente, a transformar-se em relação de emprego precário. Através das frequentes mudanças de empregador e do trabalho temporário cresce sobre os empregados a pressão de já, amanhã, estarem outra vez sem emprego.”

Uma consequência do stress psico-social é o crescimento das doenças crónicas. Além disso, as pessoas que se encontram em relações de trabalho precário raramente se deixam tratar. Esta omissãopode conduzir a lesões de longa duração e àredução do tempo de vida. Na crítica de Ulrich Schneider, diretor-geral de uma das seis grandes uniões das organizações de apoio social alemãs, o afastamento jáextremo existente entre a riqueza e a pobreza sofreu assim um agravamento dramático.

Ora é esta distinção,este afastamento, entre riqueza e pobreza que se manifesta no aumento das taxas moderadoras. A obrigatoriedade de pagar 10 euros pela consulta médica terá um efeito dissuasor para muitos pacientes. Tudo se passa como se a existência da taxa fosse uma intimação dirigida ao paciente. O que a taxa lhe diz é algo como: “Pensa bem! Precisas mesmo de ir ao médico? Tens a certeza que vale a pena ir gastar 10 euros?” O apelo do corpo, que sente que algo não está bem, é imediatamente confundido por este raciocínio calculista. E a confusão é tanto maior quanto maior for o significado que a taxa exerce na economia de cada paciente. Como diz Butterwegge, um trabalhador precário pensa cinco vezes antes de ir ao médico.

O aumento da taxa moderadora é, deste modo, como que um “cavalo de Tróia”, através da qual a política neoliberal se consegue introduzir na mente do paciente e o leva a fazer aquilo que ela, de facto, pretende: que o paciente reduza as consultas médicas e, em consequência, os tratamentos posteriores. E não é portanto difícil de perceber que a pressão deste raciocínio é tanto maior quanto maior for a situação de precariedade laboral e social em que o paciente vive. Mesmo num país rico como a Alemanha sucede o mesmo. Na Alemanha é paga há alguns anos, desde 2004, uma taxa de 10 euros por trimestre, taxa essa que é cobrada na primeira visita a um médico feita dentro do trimestre respetivo. Todas as consultas posteriores, qualquer que seja o seu número,efetuadas dentro desse trimestre ficam abrangidas pela taxa paga e só quando se estendem para o trimestre seguinte éque énecessário pagar outro trimestre. A regra geral, e descontando uma ou outra exceção devida àespecialidade do médico que se consulta, em que pode, por vezes, haver um segundo pagamento de 10 euros, éque esta taxa não vai além dos 40 euros por ano.

E mesmo assim ninguém na Alemanha ignora aquele efeito dissuasor, sabendo-se que a taxa funciona como um desincentivo para muitas e muitas pessoas não irem ao médico quando sentem necessidade de ir, indo apenas quando não podem mesmo evitar. E, como é óbvio, os principais atingidos por esta situação são as pessoas, em número cada vez maior, que se encontram em situação de trabalho precário. Como consequência, as consultas não são feitas, os tratamentos são adiados ou omitidos, e esta falta de cuidados médicos, conjugada com os outros fatores laborais e sociais acima referidos, que por seu lado também estão na base de formas de vida e de alimentação que não são saudáveis, conduzem à diminuição das expectativas de vida: “quem é pobre morre mais cedo”. Pobreza e doença estão socialmente ligadas.

A questão do aumento das taxas moderadoras não é, pois, uma questão isolada, faz parte deste movimento de afastamento de classes, que cada vez mais divide a sociedade neoliberal contemporânea em ricos e pobres. A medicina está também presa a esta divisão. A mesma medicina que aprofunda a investigação e cada vez conhece mais e melhores meios de preservação e prolongamento da vida humana vê-se sujeita a uma escala de preferências na colocação dos seus resultados. De acordo com a escala, só quem se encontra no topo da pirâmide social é que tira todos os benefícios dos resultados da medicina. Os sucessivos escalões sociais na ordem descendente vão perdendo cuidados médicos, de acordo com a progressiva diminuição do seu poder de compra. E o último escalão, onde devido ao pouco poder de compra apenas são administrados os cuidados elementares e mesmo esses já de forma cada vez mais restritiva, está incessantemente a aumentar.

Por isso, “os pobres morrem mais cedo”. Não é um acaso, nem uma lei da natureza, é uma decisão social. E mais cedo morrerão se lhes dificultarem, seja de que forma for, o acesso aos, já elementares e poucos, cuidados médicos que ainda lhes são prestados. O aumento das taxas moderadoras da saúde é uma decisão governativa que, ao lado da expansão da precariedade laboral, se inscreve a favor da perpetuação deste destino. Assim, quando o primeiro-ministro vem dizer que ainda tem “plafond” para mais aumentos das taxas moderadoras, a questão que se coloca aos trabalhadores portugueses éuma outra, bem diferente: consiste em saber se não é,antes, o “plafond” deste primeiro-ministro que já estáesgotado.

Voltarei a este assunto.

João Alexandrino Fernandes

i Fonte: „Leben in ständiger Sorge“, por Lena Jakat, Süddeutsche Zeitung online de 12.12.2011, link:http://www.sueddeutsche.de/leben/lebenserwartung-von-geringverdienern-sinkt-dramatische-zuspitzung-der-einkommenskluft-1.1232605

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário em Tübingen, Alemanha
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