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Longe da vista, longe da democracia?

Quando se fecham os portões de uma prisão, tudo o que lá se passa dentro não pode ser ignorado. Artigo de Helena Pinto.

Um Estado de Direito, que retira a liberdade a cidadãos e cidadãs, como punição por crimes que cometeram, não pode abdicar de continuar a acompanhar a vida dessas pessoas dentro das prisões. Não pode porque os princípios de um Estado de Direito não permitem “zonas de ninguém” onde o arbítrio pode ser lei, porque os reclusos, embora privados de liberdade, continuam a ter direitos que devem ser respeitados.

O respeito escrupuloso pelos Direitos Humanos, mesmo daqueles que os puseram em causa com certos tipos de crime, é o sinal da civilização e dele não podemos abdicar, caso contrário abrimos caminho à barbárie e à injustiça.

O nosso sistema penal assenta em duas questões fundamentais – a penalização e a reinserção. A função da pena é punir, mas o Estado não se demite da função da reinserção. Por isso não consta do nosso ordenamento jurídico a pena de prisão perpétua.

As prisões têm sido o parente pobre do sistema de Justiça no nosso país. Nunca há investimento suficiente, nunca existem os meios humanos adequados. E o sistema prisional não vive das declarações de boas intenções e da reafirmação de princípios que não têm tradução prática. Exemplo disto mesmo é o caso do “balde higiénico”, situação humilhante e degradante, que só foi erradicada em 2009.

A prisão é um tema incómodo, pouco popular, propício a muitas demagogias e a apelos securitários, mas fundamental para uma democracia que se quer viva e defensora da dignidade humana.

Por isso não podemos ficar indiferentes, nem descansados, porque os muros das prisões não permitem que vejamos o que lá se passa dentro. As prisões, o seu funcionamento, o acompanhamento das políticas de reinserção devem ser do domínio público e escrutinados.

No início deste ano o país foi confrontado, através dos órgãos de comunicação social, com um vídeo que apresentava uma acção do Grupo de Intervenção e Segurança Prisional (GISP) no sentido de obrigar um recluso a limpar a cela, que este mantinha repleta das suas próprias fezes. Neste vídeo é detalhada a intervenção do GISP utilizando uma arma “TASER”.

O choque foi generalizado. Aquilo que o vídeo mostrava era um homem, a quem na prisão chamam de “Animal”, algemado, em cuecas, a “limpar” a cela com os pés descalços, depois de ter sido atingido pela arma “Taser”, sem que tenha sido cumprido o disposto no Regulamento de Utilização de Meios Coercivos nos Estabelecimentos Prisionais, que só permite a utilização de armas eléctricas “para incapacitar temporariamente o recluso que ofereça resistência física activa”, “quando o recluso esteja munido de armas ou objectos contundentes, cortantes, …”, “quando o recluso ofereça resistência física activa de forma especialmente perigosa que cause, ou mostre uma clara intenção de causar, ofensa grave à integridade física” – Art.º 11.º do Regulamento de utilização de meios coercivos. É ainda de referir o princípio geral sobre esta matéria expresso no Código de Execução de Penas: “Os meios coercivos, quer pela sua natureza, quer pela forma de utilização, não podem afectar a dignidade do recluso nem podem ser utilizados a título disciplinar” – n.º 2 do Art.º 94.º.

Ficou absolutamente claro que não foi cumprida a Lei, a arma foi usada sem que estivessem verificados os pressupostos exigidos e disparada várias vezes, como ficou comprovado pelos registos gravados no sistema da arma. O Relatório produzido pelo Serviço de Auditoria e Inspecção da Direcção Geral dos Serviços Prisionais é aliás muito claro sobre esta matéria e vale a pena assinalar aqui as suas conclusões:

Os factos apurados, tal como resultam do filme e demais elementos, indiciam um uso indevido da taser x 26, porque fora das condições legais e regulamentares a que a mesma está sujeita, quer por ausência de agressão actual aos elementos do GISP, quer pelo excesso de meios que representa relativamente à situação que se pretendia ultrapassar, e que lesava bens jurídicos de terceiros de valor não negligenciável.

Cremos ter sido também bastante claros no que se refere ao quadro factual existente, aos bens jurídicos que estavam em lesão, às condições psicológicas chegadas, e às circunstâncias e consequências da intervenção, e que suscitam dúvidas ao nível da dimensão da culpa e da censura disciplinar aos factos em causa.

(…)

Em qualquer caso, deverá ser analisada a política relativa à taser x 26, designadamente investigar qual tem sido o seu real uso em Estabelecimentos Prisionais.”

O Relatório aponta para a abertura de processos disciplinares e para a remessa de certidão ao Ministério Público para apreciar a relevância penal dos factos.

Mas o caso em concreto não pode ficar por aqui, por muito claro que seja este Relatório e pela decisão final que ainda se aguarda sobre a responsabilidade criminal desta acção. Temos que nos interrogar pelo menos sobre duas questões fundamentais: Quem é este recluso? Porque se chegou a uma situação extrema de conspurcação da própria cela, o que, sem dúvida, não se podia manter?

Volto ao relatório para caracterizar o recluso: “o cidadão … é um recluso que constitui o verdadeiro desafio do sistema – pessoa que está em instituições desde criança, cresceu nas mesmas e tornou-se adulto na prisão, e do sistema prisional e de Justiça é resultado”.

Trata-se de um cidadão que nunca conheceu a “vida em liberdade”, passou das instituições para a prisão, onde acaba por passar a maior parte do tempo em “regime de segurança”. Ele é, de facto, o que o sistema fez dele. A sua primeira pena é de 2 anos, aos quais se vão somando outros por “delitos cometidos na prisão”, numa espiral que o empurra para o fundo da prisão e nunca o prepara para a vida em liberdade.

É um ser humano revoltado com a sua situação que leva os seus actos ao extremo.

Não se conhecem outras situações em que os serviços prisionais tenham tido que lidar com situações como esta no que diz respeito ao uso das próprias fezes como protesto. É um caso complicado, sem dúvida. Mas é um, em relação ao qual o sistema prisional foi incapaz de encontrar uma solução. Não soube, ou não quis lidar com ele. Chegou a todos os extremos, incluindo o castigo físico com uma arma eléctrica.

Que conclusões foram retiradas desta situação? Que mudanças tiveram lugar nos procedimentos dentro das prisões? O Ministro da Justiça ao tempo, Alberto Martins, fez um despacho proibindo o uso da “taser em situações similares”, mas mais não se sabe. Os muros prevalecem.

As prisões estão prestes a atingir a sobrelotação e sabemos que não existe investimento em meios humanos, nomeadamente aqueles que podem fazer cumprir o Plano Individual de Readaptação previsto na Lei que visa “a preparação para a liberdade, estabelecendo as medidas e actividades adequadas ao tratamento prisional do recluso, bem como a sua duração e faseamento, nomeadamente nas áreas de ensino, formação, trabalho, saúde, actividades sócio-culturais e contactos com o exterior”.

O Conselho da Europa anunciou que a Comissão de Prevenção da Tortura vai realizar em 2012 uma inspecção às prisões, em Portugal, o que pode constituir um momento importante para que o debate sobre as condições do nosso sistema prisional seja do domínio público e dessa forma se possa contribuir para as mudanças necessárias e para que os Direitos Humanos tornados Declaração Universal há 63 anos atrás possam ser algo mais que uma declaração.

(...)

Neste dossier:

Prisões e Direitos Humanos

A pena privativa de liberdade tem sido, muitas vezes, aplicada de forma desproporcional face aos crimes cometidos e o seu fim meramente punitivo tem sido privilegiado, em detrimento do seu pendor preventivo e do objectivo de reinserção do indivíduo na sociedade.  Dossier organizado por Mariana Carneiro.

Prisões portuguesas sobrelotadas e com condições "miseráveis"

No terceiro trimestre de 2011, os estabelecimentos regionais tinham cerca de 3235 reclusos para um limite de 2502 vagas. Prisões têm condições “miseráveis“ e média de mortes é o dobro dos países do Conselho da Europa. 

Longe da vista, longe da democracia?

Quando se fecham os portões de uma prisão, tudo o que lá se passa dentro não pode ser ignorado. Artigo de Helena Pinto.

O Noivo de Alcoentre

Há muitos, muitos anos, em 1979, para ser mais exacta, calhou-me fazer, para o Telejornal, uma peça sobre aquele que ficou conhecido como “o noivo de Alcoentre”, cujo nome já esqueci – e que, se recordasse, também não divulgaria, pois a pena que lhe foi aplicada não implicava, certamente, o ser apontado como criminoso pelo anos a vir. Artigo de Diana Andringa.

Vigilância: a prisão na nossa vida

É muito mais frequente ouvirmos o argumento da necessidade de segurança do que a problematização sobre a criação de uma sociedade em que somos vigiados directamente a todo o momento. Artigo de João Mineiro.

Para que servem as prisões?

A primeira ideia amplamente generalizada sobre “o porquê” da prisão é a de que a prisão serve para punir pessoas que cometeram um crime. Esta primeira ideia básica levanta desde logo interrogações imprescindíveis. Artigo de João Mineiro.

A violência nas Prisões

“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota” (Jean-Paul Sartre). A violência nas prisões – perpetrada pelos guardas ou pelos reclusos entre si – constitui abuso dos Direitos Humanos. Artigo de Pedro Krupenski.

Recluso violentamente agredido por serviços prisionais

No início do ano, o Jornal Público divulgou um vídeo onde serviços prisionais agridem violentamente recluso. A denúncia deu origem à abertura de dois processos de inquérito por parte do Serviço de Auditoria e Inspecção da DGSP e da Inspecção Geral dos Serviços de Justiça.

Direitos Humanos e prisões

Falar de Direitos Humanos é, na melhor das hipóteses, falar de boas intenções. Falar de prisões é falar de más intenções. De tratamentos degradantes ou mesmo torturas infligidas para satisfação dos sentimentos de vingança. Artigo de António Pedro Dores.