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O Noivo de Alcoentre

A história, embora, em meu entender, devesse dar lugar a longa reflexão, conta-se rapidamente: um condenado evadiu-se da prisão de Alcoentre, onde cumpria pena; passado algum tempo, voltou ao bairro onde vivera, arranjou trabalho, encontrou uma companheira, juntos tiveram uma criança. Nessa vida pacata, só a sombra de um desgosto: a companheira gostaria de, nesse tempo em que as uniões de facto levantavam ainda sobrolhos recriminadores, ter papéis que a identificassem como “casada com...”.
Alguns anos tinham passado desde a fuga, a vida corria calma, e o fugitivo decidiu dar essa alegria à companheira. Tratados os papéis, publicados os banhos, no dia da cerimónia, além de padrinhos, familiares e amigos, compareceram ao acto elementos da Polícia, que ali mesmo prenderam o noivo, devolvendo-o à prisão.
Todos os que então ouvi, vizinhos, patrão, colegas de trabalho, mo descreveram completamente integrado, bom trabalhador, bom colega, bom marido, bom pai. Não se lhe apontava nenhum novo crime: havia, apenas, essa condenação antiga e a fuga da prisão. “Mas se o fim último da pena é a reinserção do criminoso na sociedade”, perguntei ao Director dos Serviços Prisionais (estávamos a poucos anos do 25 de abril, era-nos permitida alguma fé na bondade das leis e na inteligência da sua aplicação) “por que é que, estando ele reinserido, o vão meter na prisão?” O Director parecia tão chocado quanto eu: “Pois, parece não fazer sentido, mas... é a lei. Não posso fazer nada.”
Nunca mais soube o que aconteceu ao noivo de Alcoentre – mas não me admiraria se me dissessem que, revoltado por essa segunda prisão, se tinha tornado um delinquente contumaz.
Como não me admira que, longe de serem “recuperados para a sociedade”, sejam definitivamente convertidos em inimigos desta os muitos presos comuns que – descontando embora eventuais exageros de quem, inconformado pela situação em que se encontra, busca apoio no exterior – à ACED e ao GIP relatam casos de maus tratos inflingidos nas instituições que deveriam aplicar-se em recuperá-los: provocações, insultos, castigos físicos, humilhações várias.
Por muitos daqueles filmes norte-americanos em que um sargento insulta e humilha jovens recrutas que possa ver, por muito que assista, nas ruas, às humilhações dos estudantes recém-ingressados na Universidade pelos “veteranos”, com a desculpa de que é “ tradição”, por muito que veja e reveja o documentário “Praxis” ou oiça as justificações dos pró-praxe sobre as violências inflingidas aos “caloiros”, não consigo compreender como é que violentar e humilhar alguém, livre ou preso, pode levar à sua boa integração na sociedade – excepto se por tal entendermos uma consciencialização política anti-sistema, que não me parece ser o resultado pretendido pelos sistemas judicial e prisional.
Explicam-me que, no caso das prisões, essa violência recai sobre alguém que foi antes violento. Mas a violência de um delinquente, por mais terrível que seja, por mais condenável, é uma violência privada, na qual não somos tidos como cúmplices. Não é assim com a violência de Estado, que se exerce em nosso nome. (“Nosso”, de “nós, o Povo”.). Temos, pois, o dever de a vigiar, de a evitar, de recusar ser cúmplices nela. Nem que seja por esta razão tão simples e tão egoista: é que a violência e a humilhação exercida em nosso nome não avilta apenas o que a exerce e o que a sofre, mas cada um de nós. E não me parece possível aceitar esse aviltamento.
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