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Para que servem as prisões?

A primeira ideia amplamente generalizada sobre “o porquê” da prisão é a de que a prisão serve para punir pessoas que cometeram um crime. Esta primeira ideia básica levanta desde logo interrogações imprescindíveis. Artigo de João Mineiro.

A primeira ideia amplamente generalizada sobre “o porquê” da prisão é a de que a prisão serve para punir pessoas que cometeram um crime. Esta primeira ideia básica levanta desde logo interrogações imprescindíveis: O que é um crime? Quem são os criminosos? A prisão serve mesmo para punir? Os presos são pessoas? Este texto procura dar pistas sobre possíveis respostas a estas questões e procura, por outro lado, levantar perguntas e inquietações sobre alguns dos temas, problemas e realidades que invadem frequentemente a discussão e a problematização das prisões. 

O que é crime?

O crime precede a lei ou a lei precede o crime? Se o crime é um acto que transgride uma norma jurídica - uma lei, convém começar por pensar quem define a lei e o que é que a lei define. O movimento abolicionista forçou a certa altura a discussão sobre as alternativas à prisão, porque se percebeu que a prisão serve para muito pouco (ou quase nada). Assim, surgiram formas concretas de punição não carcerárias, penas que induziam à socialização, à virtude do bem comunitário e da co-responsabilidade social. A ideia destas alternativas era a de esvaziar a ideia e prática da prisão, mas a realidade mostrou-se diferente. Apesar das alternativas à prisão terem sido pensadas para que os condenados em vez de irem para a prisão tivessem outras penas, o que aconteceu foi o inverso, quem antes não era condenado porque cometia actos pouco relevantes para o tribunal, passou a ser condenado com as “alternativas à prisão” e quem já era condenado à prisão continuou a ser. Aquilo que antes não era crime, passou a ser. Significa isto que o que faz o crime, o que o constrói, e o que o torna o susceptível de ser alvo de punição é lei. O que importa reter é que o aumento do número de condenados em prisões ou outras penas pode não significar o aumento do crime na sociedade, mas sim o aumento daquilo que juridicamente se entende como crime. Portanto, em primeira instância quem faz o crime ser crime é a lei, e a lei não é ideologicamente neutra.

Quem são os criminosos?

Neste ângulo de análise os criminosos são as pessoas que se inscrevem naquilo que o direito coloca no papel como anormal. São quem se inscreve na categoria jurídica do desvio, do crime. É criminosa uma mulher que aborta em Portugal antes da legalização da IVG. É criminoso o/a jovem que tem uma planta de cannabis em casa para auto consumo. É criminoso um homossexual na Gâmbia e pode apanhar 14 anos de prisão. É criminosa uma mulher no Irão que não passe no teste da virgindade quando casa. E o que é que os criminosos têm a ver com os presos? Às vezes tudo, outras vezes nada. Há criminosos que apenas são criminosos. Há criminosos que são simultaneamente presos. E há presos que não são criminosos. O pequeno passador e consumidor de droga pobre é criminoso e é preso, o tipo que controla o monopólio da distribuição de droga é criminoso e não é preso, e o tipo que é apanhado numa rusga num bairro a fumar um charro é preso e não é criminoso. A redução destas duas categorias esvazia o sentido e a forma do problema. Se um indivíduo assaltar outro e for apanhado é punido pelo crime de roubo, mas se um tipo desviar dinheiro depositado num banco e o colocar num offshore é criminoso porque rouba, mas não é punido, porque não convém. E mais ainda poderíamos perguntar: quando um juiz pergunta a um suspeito se tem cadastro, porque é que isso é um dado importante no apuramento do facto e na execução da condenação? Criminoso já não é só aquele que comete um crime, mas também pode ser aquele que anteriormente o cometeu. Ou pode ser também aquele que nunca cometeu mas que é culpado por não conseguir desenrolar-se de um processo que não controla, como Kafka bem anunciava no seu “processo”.

A prisão serve para punir?

Qual a finalidade real de ser preso? A prisão é um fim em si mesmo ou um meio para reabilitar os indivíduos que para lá são mandados? A hipótese de Foucault é a de que desde 1820 que a prisão deixou de querer “transformar indivíduos” para apenas servir para fabricar novos criminosos ou afundá-los ainda mais na criminalidade. Se a prisão serve para reabilitar indivíduos como é que é possível morrerem tantas e tantas pessoas na prisão? E porque a Direcção Geral dos Serviços Prisionais não divulga estatísticas oficiais das mortes? Tenho para mim a ideia que uma pessoa que morre por velhice na prisão foi condenada a pena de morte, mesmo que o tribunal não assuma. E a prisão pune quem? A prisão pune essencialmente os pobres dos mais pobres. Significa isto que os pobres são criminosos? Não. Significa que natureza intrínseca da prisão é a de punir o crime nas classes que menos poder têm, que menos recursos têm, que são alvos fáceis para justificar estatísticas, e que vivem em ciclos sociais de pobreza e desigualdade muito difíceis de contrariar. A prisão tem marca de classe e é ideologicamente orientada! Porque é que não podemos aceitar a construção de nem mais uma prisão? Porque a criação de mais prisões não significa que as prisões sobrelotadas vão ser aliviadas… Significa que para as novas prisões que se construam vão ser produzidos novos presos. Angela Davis tinha razão quando denunciou o complexo prisional industrial, e o próximo passo para a mercadorização das funções da prisão já está pensado: privatização!

Os presos são pessoas?

O primeiro procedimento exigido quando um preso chega à prisão é o de que entregue os seus pertences pessoais, que tire a roupa, que vista a farda prisional e é-lhe atribuído um número. Esta processualização e institucionalização dos indivíduos presos evidenciam com muita clareza a forma como a prisão é uma antítese: o objectivo deixa de ser o de compreender o “eu” do preso, a sua identidade, a sua história, o seu percurso de vida, a sua origem, no sentido de se tentar perceber que estratégia pode ser pensada e desenvolvida para (re)socialização, a aquisição de valores de relacionamento social e de estimulo ao desenvolvimento da personalidade e da relação com os outros, para passar a ser um relacionamento absolutamente institucionalizado com um individuo que não tem uma vida, que não tem uma história, que não uma identidade, que não tem nada mais que um número de identificação. A prisão nada mais trata do que confirmar o destino marginalizado dos grupos sociais mais desfavorecidos.

Há saídas possíveis?

Haverá certamente, mas só poderemos chegar a elas quando conseguirmos que as prisões deixem de ser o maior segredo da sociedade. É impossível pensar a prisão sem pensar a estrutura profunda de desigualdade. Para o capitalismo a prisão é uma estratégia de ataque, existe para conter a realidade que ele próprio produz e que não consegue controlar. A Esquerda não pode desviar o olhar deste debate. Se o fizer a prisão para a Esquerda passa a ser um sinal desistência, a desistência de transformar o Mundo.

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Neste dossier:

Prisões e Direitos Humanos

A pena privativa de liberdade tem sido, muitas vezes, aplicada de forma desproporcional face aos crimes cometidos e o seu fim meramente punitivo tem sido privilegiado, em detrimento do seu pendor preventivo e do objectivo de reinserção do indivíduo na sociedade.  Dossier organizado por Mariana Carneiro.

Prisões portuguesas sobrelotadas e com condições "miseráveis"

No terceiro trimestre de 2011, os estabelecimentos regionais tinham cerca de 3235 reclusos para um limite de 2502 vagas. Prisões têm condições “miseráveis“ e média de mortes é o dobro dos países do Conselho da Europa. 

Longe da vista, longe da democracia?

Quando se fecham os portões de uma prisão, tudo o que lá se passa dentro não pode ser ignorado. Artigo de Helena Pinto.

O Noivo de Alcoentre

Há muitos, muitos anos, em 1979, para ser mais exacta, calhou-me fazer, para o Telejornal, uma peça sobre aquele que ficou conhecido como “o noivo de Alcoentre”, cujo nome já esqueci – e que, se recordasse, também não divulgaria, pois a pena que lhe foi aplicada não implicava, certamente, o ser apontado como criminoso pelo anos a vir. Artigo de Diana Andringa.

Vigilância: a prisão na nossa vida

É muito mais frequente ouvirmos o argumento da necessidade de segurança do que a problematização sobre a criação de uma sociedade em que somos vigiados directamente a todo o momento. Artigo de João Mineiro.

Para que servem as prisões?

A primeira ideia amplamente generalizada sobre “o porquê” da prisão é a de que a prisão serve para punir pessoas que cometeram um crime. Esta primeira ideia básica levanta desde logo interrogações imprescindíveis. Artigo de João Mineiro.

A violência nas Prisões

“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota” (Jean-Paul Sartre). A violência nas prisões – perpetrada pelos guardas ou pelos reclusos entre si – constitui abuso dos Direitos Humanos. Artigo de Pedro Krupenski.

Recluso violentamente agredido por serviços prisionais

No início do ano, o Jornal Público divulgou um vídeo onde serviços prisionais agridem violentamente recluso. A denúncia deu origem à abertura de dois processos de inquérito por parte do Serviço de Auditoria e Inspecção da DGSP e da Inspecção Geral dos Serviços de Justiça.

Direitos Humanos e prisões

Falar de Direitos Humanos é, na melhor das hipóteses, falar de boas intenções. Falar de prisões é falar de más intenções. De tratamentos degradantes ou mesmo torturas infligidas para satisfação dos sentimentos de vingança. Artigo de António Pedro Dores.