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O momento constituinte

A questão central deste momento constituinte é, como em momentos anteriores, a da democracia.

Agora vem a cimeira decisiva. Mas não foi como decisiva que foi anunciada cada uma das muitas que antecederam esta? É sempre assim: quando quem manda quer exibir o consentimento de quem é mandado, trata de o encostar às cordas invocando que não há tempo a perder e que ou aceita o diktatou fica responsabilizado pelo caos que de outro modo se seguirá. A novela das cimeiras europeias dos últimos dois anos é uma aula prática em continuumdesta tática de ratice política.

Agora o decisivo tem nome: “regra de ouro”. Os arautos da governação liberal europeia – os mesmíssimos que inflamaram discursos contra “o viés ideológico” das constituições nacionais consagradoras do Estado Social – não querem menos que constitucionalizar, em escala europeia e sem revisão pensável, o dogma ideológico do défice zero. E, dessa forma, querem constitucionalizar a austeridade das famílias como política económica da zona euro e a erradicação de qualquer vislumbre de modelo social europeu como princípio primeiro da constituição económica europeia.

Este é um momento constituinte da União Europeia. É um momento constituinte incompetente e a-democrático. Incompetente porque insiste em fazer da sobre-dosagem do tóxico a terapêutica. O que está a conduzir a Europa a uma depressão económica sem precedentes será preceito constitucional sem margem de manobra possível. A-democrático porque aposta na sua própria blindagem contra qualquer inesperado gesto democrático que o afronte. A “regra de ouro” é o Pacto de Estabilidade e Crescimento em versão Rambo: cientes de que não conseguem, pela razão, convencer os Estados a adoptar uma política suicida, os que mandam impõem-na pela força – não é outro o sentido da centralidade atribuída às “sanções automáticas” aplicáveis aos países que tenham défices das contas públicas superiores à fasquia sagrada. Angela Merkel chama-lhe união orçamental. Não é. É disciplina prussiana ao serviço do fundamentalismo calvinista.

A questão central deste momento constituinte é, como em momentos anteriores, a da democracia. É em torno da questão democrática que se construirão os alinhamentos políticos desta disputa política fundamental para as nossas vidas. A chantagem soprada por quem manda procura, de novo, encostar-nos às cordas com uma escolha irredutível: ou “reforço da integração” ou o caos. É uma evidente armadilha. O que os vozeiros de Merkel e Sarkozy pretendem é que aceitemos escolher entre o reforço da integração que eles queremou um suposto caos que não descrevem. A esta chantagem, a serenidade e a convicção democrática têm que contrapor que caos é o reforço da integração que nos querem impor; caos é a austeridade como ditame constitucional; caos é a recessão sem fim. Sim, a Europa precisa como do pão para a boca de reforçar a sua integração. A saída desta crise ou será europeia ou não será saída nenhuma. Mas essa integração reforçada só pode ser a de completar a moeda única como uma política económica integrada de crescimento e de emprego, com um orçamento comunitário com grandeza para dar suporte a políticas públicas em escala comunitária e com um banco central digno desse nome.

Sobre este eixo de definição de alinhamentos políticos assenta um outro ainda mais fundamental. Este é o momento para escolher sem subterfúgios entre a convicção de que a soberania popular é sempre o critério primeiro e último da política e o entendimento de que a soberania popular é um campo de desvario que põe em risco os grandes desígnios. A consulta do povo sobre o novo tratado constitucional querido pelo directório é uma exigência essencial da democracia. Veremos quem alinha de que lado destas escolhas fundadoras.

Artigo publicado no jornal "Diário de Notícias" a 9 de Dezembro de 2011

Sobre o/a autor(a)

Professor Universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda
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