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A philosophia dos que atacam o acordo ortográfico deixa-me exhausto

Vasco Graça Moura e os autores da "petição/manifesto em defesa da língua portuguesa e contra o acordo ortográfico" arvoram-se em defensores da "nossa identidade multissecular" e do "riquíssimo legado civilizacional e histórico que recebemos e nos cumpre transmitir aos vindouros". Não se percebe o que é que isso tem a ver com o acordo ortográfico.

Será que propõem que voltemos a escrever como o Padre António Vieira, um dos pilares da "nossa identidade", que nasceu há quatro séculos e ainda por cima tem a vantagem de ser uma referência tanto para Portugal quanto para o Brasil? Não, não propõem. Nem sequer propõem que escrevamos com a ortografia que vigorava mais recentemente, nos tempos de, digamos, Eça de Queirós. Eles não têm a coragem de uma professora de português anti-acordo, muito entrevistada pela SIC Notícias, que, depois de esgrimir contra o acordo, reconhecia que gostava que Filosofia voltasse a ser escrita com Ph: Philosophia.

Não: o que eles querem é que não haja acordo algum. Esgrimem o argumento da diversidade, mas basta ler Vasco Graça Moura para perceber que a diversidade que ele defende é uma espécie de competição com o Brasil: de um lado, os brasileiros, do outro Portugal e todos os restantes países de língua portuguesa que, segundo ele, aplicam a norma portuguesa. "Há mais de 40 milhões de seres humanos que seguem a norma portuguesa", diz o deputado, que conclui: "A adopção do Acordo redundará em total benefício do Brasil." Isto é, dos 180 milhões de brasileiros.

Curiosamente, há ilustres brasileiros que estão contra o acordo. Caetano Veloso, por exemplo, acha absurdo deixar de usar o trema, que os portugueses já aboliram há tempos e ainda vigora no Brasil.

Já o escritor angolano José Eduardo Agualusa percebeu muito bem o que está em causa. E ameaça com retaliações: "Caso o Acordo Ortográfico não venha a ser aplicado - por resistência de Portugal -, entendo que Angola deveria optar pela ortografia brasileira", defende. E explica: "Não devemos nada a Portugal. O Brasil tem 180 milhões de habitantes, e produz muito mais títulos, e a preços mais baratos, do que Portugal. Assim sendo, parece-me óbvio que temos mais vantagem em importar livros do Brasil do que de Portugal.

Os autores do manifesto anti-acordo esgrimem com a importância das "impropriamente chamadas consoantes 'mudas' - muitas das quais se lêem ou têm valor etimológico indispensável à boa compreensão das palavras". Lançam a confusão. As consoantes que se lêem nos dois países são mantidas no acordo. Exemplo: compacto, convicção, ficção, friccionar, pacto, eucalipto, opcional e muitas outras. As que se lêem num país e não no outro, mantêm a dupla grafia. Assim, os portugueses continuam a escrever facto e fato (e os brasileiros a escrever fato e terno...) As que caem são aquelas que não estão lá a fazer nada: passa-se a escrever, pelo acordo, ação, adjetivo, adoção, afetivo, apocalítico, ativo, ato, ator, atual, batizar, coleção, coletivo, correção, correto, direção, diretor, eletricidade, exato, exceção, excecionalmente, exceções, fator, fatura, inspetor, letivo, noturno, objeção, objeto, ótimo, projeto, respetiva e muitas outras. Como não podem argumentar que se pronuncia "adjequetivo", os anti-acordo invocam o "valor etimológico". Mas então por que não defendem o regresso a ‘phosphoro' ou ‘exhausto', fórmulas certamente muito melhores para se perceber a etimologia indispensável para a compreensão destas palavras? E, já agora, por que não defendem, como Caetano Veloso, que se volte a usar o trema?

O acordo ortográfico pode ter incorrecções, vírgulas mal colocadas, um ou outro erro técnico. Mas por que só agora se lembraram disso os seus detractores? Afinal, o acordo é de 1990!

Não confundam as pessoas! Vasco Graça Moura está imbuído da sua missão multissecular de defender o conservadorismo ortográfico, contra qualquer mudança, e a favor de expulsar os brasileiros da língua portuguesa. Como já o fazem, muitas vezes sem se darem conta, os portugueses que dizem que os brasileiros falam outra língua: o "brasileiro". O curioso é que os brasileiros, mesmo os menos letrados, dizem, com toda a razão, que falam português.

Os detractores do acordo fazem uma enorme confusão entre ortografia, as regras da escrita, e linguagem. Como diz Agualusa, "o Acordo Ortográfico tem por objectivo a existência de uma única ortografia no espaço da língua portuguesa, não pretende, o que aliás seria absurdo, unificar as diferentes variantes da nossa língua."

Declaração de interesses: tenho todo o interesse pessoal de que o acordo seja aprovado. Explico-me. Sou português, mas vivi 17 anos no Brasil. A maior parte da minha carreira de jornalista foi feita no Brasil. Ainda hoje escrevo eventualmente para meios de comunicação brasileiros. Quando o faço, escrevo com a ortografia e a linguagem brasileiras. Quando o faço para meios de comunicação portugueses, uso a grafia portuguesa. Quando vivi no Brasil, o trema infernizou-me a vida. Assim como o acento agudo em "assembléia" ou "idéia", que agora também vai cair com o acordo. A entrada em vigor do acordo ortográfico facilita-me imenso a vida. Mas quem me irá criticar por isso?

Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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