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Crónica dos dias que passam

A poeira da política da austeridade entranha-se nas vidas difíceis como uma tempestade de areia que vem transformar o território da maioria das pessoas, alisando-o, tornando-o monótono, árido, sem vida.

A poeira da política da austeridade entranha-se nas vidas difíceis como uma tempestade de areia que vem transformar o território da maioria das pessoas, alisando-o, tornando-o monótono, árido, sem vida. A elite é protegida num suposto oásis, paraíso dos intocáveis, inimputáveis de responsabilidades e sacrifícios. Assim, para a maioria das pessoas, e assim lhes é dito, tudo o que vai além da sobrevivência é um luxo, um apetite burguês, acessório, não importante. Por isso, limitada pelos salários à conta ou insuficientes, pela vida centrada no ganha-pão, pelo tempo livre que apenas pede alienação, pela chantagem do desemprego ou da discriminação, a maioria das pessoas soma um dia ao outro sem chegar a um resultado final. Desejam que a semana acabe para começar logo outra, acumulando tempo vazio, um tempo cheio de nadas.

Esta é mais uma consequência da austeridade: não são só as barrigas vazias… são também as almas penadas.

O Orçamento do Estado para 2012 traz-nos a recessão e a pobreza, mais exploração e menos salário. Este é o primeiro plano do horizonte programado. Num segundo plano paralelo, encontramos a engrenagem da automatização das vidas e um país cego de cultura e humanidade.

A desvalorização do custo do trabalho, seja por via da desvalorização salarial, pela diminuição do custo das indemnizações por despedimento, pela intensificação da precariedade e do trabalho ilegal, vem desequilibrar de modo acentuado as relações laborais a favor dos ‘empregadores’. Instituir meia hora por dia a mais de trabalho gratuito é o desvario ideológico que este Governo se prepara para concretizar, tendo na calha outras propostas perigosas como a instituição de um contrato único sem garantias ou o despedimento por inadaptação. Tudo isto deixará quem trabalha e vive dos seus rendimentos ainda mais dependente dos seus empregos ou da chantagem de os perder. A par disto, o trabalho por turnos, as horas extraordinárias ou o regime muitas vezes necessário do ‘dois empregos’, são já condicionantes que tornam precárias as vidas que se vão desenrolando sem projetos e sem sonhos. No final do dia, as horas que sobram só podem servir para descansar, para esperar que chegue outro dia igual. O tempo livre é um luxo e quando ele é proporcionado nem se sabe para que serve – ocupa-se com o que está à mão, ou seja, com o comando da televisão, com o passeio no centro comercial, programa fast-food.

O orçamento para a Cultura, por exemplo, não é apenas desastroso, é uma angústia. Legitimamente incrédulos perguntamos: mas como podemos ficar sem a Companhia Nacional de Bailado? Ou sem a Orquestra Sinfónica do Teatro Nacional S. Carlos? E isto são só as consequências aparentemente mais visíveis. Todas as artes verão reduzidos os seus financiamentos públicos, o que neste país pequenino é praticamente o mesmo que dizer a sua existência. Para além da produção, o acesso à cultura também será estreitado, ainda mais. Acaba-se com a entrada gratuita nos museus ao domingo, um extra que a dívida pública não pode suportar, e aumenta-se o IVA nos bilhetes dos espetáculos.

Com as desculpas da crise e da poupança sempre à mão, encontrou-se a oportunidade para tornar a cultura um sacrifício, porque afinal é um privilégio que se pode dispensar. Note-se que, para muitos, sempre foi um extra inacessível e por isso nem vão reparar que vai deixar de haver ópera no S. Carlos, poderão pensar os nossos ignóbeis governantes. Mas o problema é mesmo esse: que país é este que estagna na impossibilidade de se pensar, representar, retratar, traduzir, imaginar? É um país mudo, incapaz de se maravilhar, indisponível para se questionar e transformar. O tempo que sobra, e que é tão pouco, não poderá ser suspenso para se assistir a um concerto, ler um bom livro – tudo isso será demasiado caro ou já não haverá.

Como se não bastasse a escravidão do trabalho, querem-nos aprisionados na mediocridade.

Contudo, no desespero dos dias que passam, há dias que marcam os verdadeiros oásis no deserto, como câmaras abertas de oxigénio que reorganizam e fortalecem a resposta política à tempestade da austeridade. Estes dias permitem suster a dominação com o poder da ação concertada e abalar a autoridade dos poucos com a solidariedade dos muitos. São dias em pensamos que o tempo que passa tem de valer a pena.

Foi assim nesta Greve Geral. Há dias que não só não são iguais a todos os outros, como são ainda determinantes para os que vêm depois serem sempre diferentes, inesperados.
 

Sobre o/a autor(a)

Investigadora e doutoranda em Filosofia Política (CFUL), ativista, feminista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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