A Apple “pensa diferente”?

Steve Jobs era inovador e tinha boas ideias, sempre e quando essas ideias fossem lucrativas. Mas quando se vê em posição dominante, a Apple persegue impiedosamente quem lhe faz concorrência, aplicando as piores práticas monopolistas.

06 de November 2011 - 11:12
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“O homem que mudou as nossas vidas”. Foi este o lema mais usado pelos média mainstream para definir o co-fundador da Apple Computers, Steven Paul Jobs, quando este faleceu, de cancro, em 5 de Outubro de 2011. Para ilustrar esta afirmação, o que mais se citava eram as últimas criações da Apple – o tablet iPad, o telemóvel iPhone e o leitor de mp3 iPod, gadgets topo de gama que em geral só podem ser comprados por pessoas de alto poder aquisitivo. O exagero ficava, assim, patente. Se é duvidoso que o iPad tenha mudado a vida dos seus utilizadores – mas admissível, e não faltarão entusiastas a dizer que sim –, o tablet da Apple, que custa, na sua versão de 32 Gb com 3-G, 699 euros, dificilmente terá mudado a vida de toda a gente, sequer dos utilizadores de computadores pessoais ou da Internet.

Curiosamente, pouco foi citada uma das maiores contribuições de Steve Jobs para o mundo da informática – a interface gráfica que usa a metáfora do “desktop”, a mesa de trabalho, com pastas que organizam ficheiros e atalhos para lançar aplicações, com a qual o utilizador interage através de um teclado e um rato. Steve Jobs não inventou esta interface – o rato foi criado pela xerox, a primeira interface gráfica funcionou num computador xerox Alto concebido em 1973, e uma interface gráfica mais parecida com a actual rodava num Xerox 8010 Information System, criado em 1981. Mas estes computadores eram workstations caríssimas, completamente fora do alcance do utilizador comum. Foi, assim, Jobs que teve o mérito de pôr uma interface gráfica elegante a funcionar pela primeira vez em computadores de custo mais baixo – os Apple Macintosh 128K de 1984, que rapidamente entusiasmaram os primeiros utilizadores de computadores pessoais e criaram um padrão que mais tarde viria a ser descaradamente copiado pelo Windows da Microsoft.

Jobs era um CEO muito competente, é certo, teve grandes ideias, como a de desenvolver a computação gráfica no cinema de animação, criar o mercado da música digital, com o iTunes – numa época em que as discográficas não conseguiam imaginar nada mais brilhante do que tentar mandar para a cadeia todos os adolescentes que copiavam música e a partilhavam na Net –, usar com maestria a excelência do design para vender os seus computadores, lançar a interface baseada nos ecrãs tácteis. Tudo excelentes ideias, algumas das quais tornaram a Apple, que chegou a estar à beira da falência, na segunda maior empresa dos EUA.

Mas a dinâmica e o entusiasmo de Jobs eram viradom para esse objectivo – fazer crescer a sua empresa, ganhar dinheiro; se isso mudasse a vida das pessoas, melhor, mas só se isso fosse lucrativo e rendesse dividendos para os accionistas da empresa da maçã. Precisemos, portanto: Steve Jobs podia ter alguns aspectos de visionário, mas com as limitações do capitalismo e do objectivo do lucro. Podia ser diferente?

Um verdadeiro visionário

Podia. O maior visionário desta área do conhecimento não tem uma empresa, não ganhou dinheiro coma sua invenção e, no entanto, mudou realmente a vida de todos nós. Chama-se Tim Berners-Lee e criou a World Wide Web, a Internet tal como a conhecemos hoje. Com isso, ele criou a mais importante ferramenta da comunicação humana do final do século passado, que não pára de mudar as nossas vidas, realmente de todos – até nas favelas do Brasil há computadores ligados à Internet. Ninguém já consegue imaginar como se vivia antes da Internet.

Se Berners-Lee tivesse a mesma mentalidade de Jobs, teria fundado uma empresa, patenteado os protocolos da www e ficado imensamente rico com isso. A web ter-se-ia desenvolvido a passo e tartaruga e provavelmente nunca teria chegado ao que é hoje, mas os accionistas da empresa que Berners-Lee criasse iam ficar satisfeitíssimos com os dividendos. Berners-Lee não fez nada disso, não criou qualquer empresa, não ficou rico, e a sua invenção expandiu-se a uma velocidade supersónica – a web é o meio de comunicação que mais rapidamente se desenvolveu na história, comparada com a rádio ou com a televisão. Todos os protocolos inventados por Berners-Lee são livres, e o seu inventor apenas dirige uma fundação que tenta manter uniforme a padronizado o desenvolvimento da web. As empresas de telecomunicações ganham fortunas com a Net, as empresas de informática – de hardware e de software – idem, mas Berners-Lee não. Ele, sim, foi um visionário – a sua invenção revolucionária foi posta realmente ao serviço da Humanidade, mudou a vida de todos.

Steve Jobs, em contrapartida, tinha urticária se ouvia falar de software livre. Ele foi um defensor acérrimo do software proprietário e das patentes de software. Há dias, a Apple conseguiu obter a patente do gesto de desbloquear os dispositivos de ecrã táctil. Define-se assim: “O dispositivo será desbloqueado quando no ecrã for feito um gesto predefinido para esse mesmo dispositivo. O dispositivo apresenta uma ou mais imagens da acção desbloquear, onde nessa área está predefinido o gesto a realizar. É dessa forma que o dispositivo fica desbloqueado. Essa imagem deverá conter uma forma por onde o gesto terá de ser feito e estar devidamente identificado. Feito esse caminho indicado, a acção resultará no desbloqueio, estando agregados à imagem e ao sistema todo o movimento necessário para o efeito. Essa imagem deverá conter também pistas ou indicações para que seja feito o devido gesto, o utilizador deverá ter indicações de qual o gesto a usar.”

Assim, a Apple fica dona de um gesto (!!) e pode impedir as suas concorrentes de o usar por um período de pelo menos 5 anos. Claro que os Samsung, HTC e tantos outros vão continuar a usar essa função, e a patente apenas servirá à Apple para alimentar a guerra jurídica com as empresas concorrentes.

É um flagrante exemplo de como a patente de software não serve para proteger a inovação, mas sim para impedi-la e tentar bloquear a concorrência.

O sonho monopolista

A Europa andou em guerra com a Microsoft e as suas inegáveis práticas monopolistas, mas a Apple nunca ficou atrás da empresa de Bill Gates no que diz respeito a estas práticas. O sonho de forçar todos os clientes a usar produtos de uma só empresa, e a prática que daí decorre são inerentes ao próprio capitalismo e todas as empresas gostariam de concretizá-lo. É só uma questão de oportunidade. A Apple usou o lema “Pense diferente” quando já tinha sido esmagada pela Microsoft e queria fazer apelo a um público minoritário de maior poder de compra e mais sofisticado. Mas sempre que se viu em posição dominante, tentou aplicar um lema bem diferente: no mercado da música digital, por exemplo, poderia ter sido “Pense só em mim” – a Apple fez os possíveis por amarrar os donos de iPod a só comprar na sua loja iTunes, e ao mesmo tempo dificultar a vida de quem tivesse a ousadia de possuir leitores de outras marcas e quisesse ir às compras no iTunes.

O iPhone e o iPad seguem o mesmo caminho. O dono de um iPhone só pode instalar no seu aparelho o software que a Apple permite e, para isso, a empresa usa largamente os DRM (digital rights managment), dispositivos digitais que lhe permitem controlar absolutamente o que pode ou não ser instalado. Claro que as aplicações que forem concorrentes podem assim ser alegremente bloqueadas. E onde fica o direito do utilizador instalar o que quiser no aparelho que comprou? Onde fica o direito de “pensar diferente”? Simplesmente ficou esquecido – e a Apple persegue impiedosamente os que tentam quebrar este controlo, desbloqueando o seu aparelho através do “jail-breaking”, um software de desbloqueio. A Apple chega ao ponto de multiplicar as supostas actualizações de software que, na verdade, apenas têm como objectivo neutralizar a última versão do “jail-breaking”.

A Micosoft, na área do desktop, aliás, tenta fazer o mesmo: o mais novo Windows, o oito, terá um dispositivo que, sob o pretexto da segurança, impedirá que seja instalado em paralelo outro sistema operativo, como o Linux, no sistema de dual-boot. Até agora, qualquer pessoa que compra um computador – que invariavelmente vem com o Windows instalado – pode instalar o Linux em paralelo, e assim, quando liga o aparelho, pode escolher qual o sistema operativo que quer usar. Mas, apesar de o Linux ser muito minoritário, pelos vistos cria pesadelos à empresa de Bill Gates que, assim, se prepara para impedir que esta escolha possa ser feita.

O objectivo e a prática do monopólio unem assim as duas gigantes do software americanas. A diferença é que, como a Apple sempre foi minoritária, despertou mais simpatia. Mas demonstrou a sua verdadeira face monopolista quando atingiu posições maioritárias em determinados mercados.

Mas não será que o monopólio é inevitável? A liberdade do utilizador não é uma quimera? Felizmente não. Em todo o mundo, milhares de programadores trabalham quase anonimamente para criar software, livre de todos os bloqueios, livre para ser copiado, estudado e melhorado, e por sua vez divulgado. É a comunidade de software livre. Passo a passo, o software livre tem amadurecido, e em muitas áreas já é uma alternativa plena à Apple e à Microsoft.

Não tem talvez o design sofisticado dos sistemas Apple; em alguns casos ainda é talvez menos amigável que o MacOSX ou o Windows. Mas é totalmente livre, faz parte de um mundo onde não há pirataria justamente porque todo o software é de código aberto, pode ser estudado, copiado, instalado e modificado livremente; não tem vírus, é mais seguro. Chama-se Linux. Quem o usa pode dizer, com propriedade, que “pensa diferente”.

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