You are here

Deve a esquerda deixar de apoiar a Bolívia?

A Bolívia foi palco recentemente de um lamentável episódio de violência policial que prejudicou irremediavelmente a imagem de um dos governos mais progressivos do mundo.

Na base do episódio esteve o protesto de dois milhares de indígenas contra a construção de uma nova auto-estrada no Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS), muito contestada por grupos indígenas e ambientalistas. A questão que assola muita gente na esquerda é: como foi isto possível?

O primeiro (e mais importante) motivo para o conflito social foi o desrespeito do governo de Evo Morales pela norma constitucional que o obriga a consultar as comunidades afectadas pela construção de novas infraestruturas. Em Junho deste ano, o governo anunciou como um dado adquirido que seria construída uma nova auto-estrada pela área protegida que compreende parte da floresta amazónica. Desde então que se tem mantido irredutível na sua posição, excluindo a possibilidade de desviar a auto-estrada de forma a que não passe no TIPNIS.

O governo foi ainda responsável por vários episódios lamentáveis de ataque aos líderes da marcha. A 21 de Agosto, por exemplo, Evo Morales apareceu na televisão para mostrar o registo de chamadas que os líderes da marcha teriam recebido da embaixada dos EUA, o que, a ser verdade, demonstra tanto a instrumentalização do protesto pelos EUA como o desrespeito do governo pela privacidade dos cidadãos. Oito dias depois, o governo divulgou imagens de um dos líderes, o deputado Pedro Nuni, a beber álcool em sua casa numa altura em que supostamente estaria na marcha, apenas para se vir a descobrir que ele tinha saído da marcha por umas horas para ir ao aniversário da filha.

Erros destes num país que está a ferro e fogo, com a direita sempre à procura de mais uma oportunidade para um golpe de estado, pagam-se caro. A atitude inflexível do governo apenas serviu para atirar gasolina para o incêndio e foi um dos factores que levaram à repressão policial da marcha a 25 de Setembro.

Para sermos justos, contudo, devemos também olhar para a inflexibilidade dos manifestantes. A marcha, formada em parte por indígenas armados com arcos e flechas, foi por oito vezes abordada por representantes do governo que procuravam um entendimento. No último encontro, o Ministro dos Negócios Estrangeiros, David Choquehuanca, de origem indígena, foi raptado pelos manifestantes, que o usaram como escudo para furar uma barreira policial. Como já é habitual em muitos países da América Latina, a linha divisória entre protesto e guerra civil é muito ténue.

O segundo motivo para o conflito que divide o país é a indefinição ideológica em torno do “viver bem”, o “pós-desenvolvimentismo” e outros termos usados correntemente pelo governo boliviano para denominar um sistema económico orientado não para o crescimento da produção mas antes para a sustentabilidade social e ambiental, termos bonitos na forma mas ainda vazios no conteúdo.

Não há uma resposta simples para a questão de se deve ou não ser construída a nova auto-estrada. De um lado, temos a necessidade de comunicações terrestres num país ainda pobre e com graves deficiências a nível de infraestruturas e o facto de a nova via permitir uma ligação entre o Atlântico e o Pacífico centenas de quilómetros mais curta que a actualmente existente. Do outro, temos a necessidade de preservar uma área natural cuja importância para o bem-estar da humanidade é inestimável. Talvez possamos, então, reformular a questão.

Foi o que fez Pablo Solón, ex-representante na ONU da Bolívia e um dos principais protagonistas do movimento que pôs o “viver bem” na agenda política. Para ele, a auto-estrada deve ser desviada de forma a não passar pelo TIPNIS, independentemente do custo adicional que essa opção implique. Esta é uma posição coerente com a defesa dos direitos da natureza, consagrados na constituição da Bolívia, e com a preservação de territórios onde vivem comunidades indígenas. Mas, infelizmente, esta posição ainda não colhe grandes apoios no governo boliviano.

A terceira razão para o conflito em torno da nova auto-estrada é a clara interferência das forças políticas que se têm oposto ao governo de Morales desde que tomou posse. Apesar de a forma como o governo lidou com os protestos ser lamentável e apesar de a muitos progressistas chocar a acusação de ingerência externa nos protestos, a verdade é que há sinais claros de manipulação da causa indígena por parte dos EUA e da direita boliviana.

Estes sinais saltam à vista desde logo quando vemos o historial da organização que convocou a manifestação, a Confederación de Pueblos Indígenas de Bolivia (CIDOB). Segundo dados tornados públicos, incluindo os telegramas diplomáticos divulgados pela Wikileaks, a CIDOB é uma das organizações bolivianas financiada pela agência de ajuda externa dos EUA, a USAID, numa estratégia neo-colonial de apoio a forças oposicionistas do governo. Ao longo dos anos, a CIDOB colocou-se por várias vezes do lado contrário dos interesses dos indígenas, chegando nomeadamente ao ponto de se aliar com a burguesia racista de Santa Cruz para apoiar a autonomia da região ou de se opor a uma proposta que obriga as companhias petrolíferas a consultar as comunidades indígenas antes de explorar petróleo nas suas terras.

Os próprios fins da marcha contra a nova auto-estrada tornaram-se inclusive cada vez menos claros à medida que a marcha progredia. Aquilo que começou por ser um protesto com uma causa clara tornou-se numa manifestação com dezasseis exigências diferentes, algumas das quais claramente de direita. Um exemplo de uma exigência muito contestada por outros grupos indígenas é a de que os indígenas do TIPNIS possam receber dinheiro pela preservação da floresta através da venda de créditos de carbono, um negócio repudiado pelo governo da Bolívia que justamente rejeita o princípio do mercado de carbono que permite aos grandes poluidores continuarem a poluir comprando créditos.

Mas talvez a exigência mais reveladora de como na origem da marcha estão interesses que nada têm de progressista é a da substituição dos funcionários da autoridade governamental que supervisiona a atribuição de terras e monitoriza o cumprimento da lei relativamente à desflorestação. A exigência dá razão ao governo quando acusa a CIDOB de pretender manipular esta autoridade governamental com o fim de preservar os interesses dos colonos e indígenas que vivem da desflorestação ilegal e do cultivo ilegal de coca. O governo boliviano está, aliás, a elaborar uma nova legislação que punirá estes crimes com penas de 10 a 20 anos, o que mexe com os interesses de muitos latifundiários e até de muitos detentores de pequenas parcelas de terra atribuídas em grande parte pela ditadura.

Daqui não decorre, note-se, que os protestos são ilegítimos. Mas permite-nos ver que a imagem passada pela comunicação social de um protesto de indígenas contra um governo opressor não é muito fiel à realidade.

O mesmo se pode dizer da cobertura noticiosa da repressão policial de 25 de Setembro. No dia seguinte, a comunicação social ocidental não hesitou em replicar notícias de mortes, incluindo (note-se o simbolismo) a de um bebé, e de muitos desaparecimentos. Veio-se a descobrir entretanto que não houve qualquer morte e que os desaparecimentos diziam respeito apenas a pessoas que se refugiaram temporariamente na floresta.

Nos próximos tempos saberemos como se resolverá este conflito que deu origem a tanta violência. Até agora, o governo deu sinais contraditórios. Evo Morales pediu desculpa pelo sucedido, houve várias demissões no governo e na polícia e foi aberto um inquérito internacional a todos os polícias envolvidos. A construção da auto-estrada foi suspensa e foi prometido um referendo local, para que haja finalmente um processo de consulta pública. Contudo, o governo continua a não revelar quem deu a ordem para a carga policial sobre a marcha, o que é no mínimo estranho.

Não pretendo com este texto dar uma resposta definitiva à pergunta colocada no título, porque acho que essa resposta não existe. Os governos de esquerda da América Latina têm cometido uma série de erros lamentáveis e são responsáveis por gestos de autocracia nada próprios da esquerda democrática que preconizam. Mas isto não nos deve fazer esquecer a importância das revoluções democráticas que percorreram os países que hoje compõem a ALBA, países onde se têm conseguido avanços notáveis no combate à pobreza, na promoção do emprego, no investimento em serviços públicos e em tudo o que é relevante para a justiça social. Deixar de defender governos que estão a aplicar as políticas que nós defendemos, como se fossem iguais aos governos neoliberais, não parece fazer muito sentido. Defender entusiasticamente estes governos quando são incoerentes com os seus princípios também não. Daí que a noção de apoio crítico seja cada vez mais relevante para descrever a atitude da esquerda democrática perante estes governos.

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
(...)