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Um Mês em Cabul
Enquanto terminava este artigo, a Associated Press (14/09/11) noticiou que a embaixada norte-americana em Cabul tinha sido atingida por granadas de morteiro e que tinham sido “canceladas todas as deslocações dos diplomatas norte-americanos destacados no Afeganistão e suspensas todas as viagens no interior do país”.
Poucas pessoas nos EUA têm um conhecimento directo do Afeganistão. Outras tantas terão uma ideia aproximada do quanto o povo afegão tem sofrido com a invasão e a ocupação do seu país – a qual já dura há dez anos. Uma mão-cheia conhecerá a dimensão do fracasso absoluto da guerra – excepto no que toca aos super-lucros obtidos por“determinadas” empresas de segurança.
Este Verão, assombrado por esta lacuna na minha formação, passei um mês no Afeganistão – mais precisamente em Cabul – enquanto delegado da modesta [organização não-governamental denominada] Vozes pela Não-Violência Criativa (Voices for Creative Nonviolence).
Homens armados e nervosos
Cabul é uma cidade de sacos de areia e de homens armados e nervosos, [os quais circulam] a pé ou em veículos grandes, reluzentes e buzinantes. Em Cabul vive-se de uma maneira opaca por detrás de portas blindadas e de muros eriçados com arame farpado. Ao aproximar-se do aeroporto, os soldados farão o/a leitor/a sair do automóvel três vezes e ser revistado/a outras tantas, antes sequer de se dirigir para o parque de estacionamento.
Cedo fomos informados que esta região está a viver a pior situação de segurança dos últimos trinta anos; isto de acordo com a Cruz Vermelha. Quem está comprometido com o actual regime teme o que se diz acerca da retirada das forças norte-americanas e aliadas. (Os EUA estão, sossegadamente, a fazer lóbi junto do governo de Karzai para que este aceda à instalação de bases [militares] norte-americanas permanentes). As pessoas que vamos encontrando preferem o diabo que ficaram a conhecer ao longo desta década atroz a outros diabos difíceis de prever e de identificar.
A circulação da nossa delegação foi limitada. Deveríamos evitar aventurar-nos para além dos relvados bem aparados e das roseiras do complexo onde estávamos alojados? De maneira nenhuma. Mas permanecemos entre aquelas paredes altíssimas até o nosso motorista chegar e depressa pulámos para dentro do automóvel. O nosso imperturbável motorista, capaz de reflexos quase sobrenaturais, mergulhou-nos naquilo que é provavelmente o trânsito mais denso, assustador e desregulado – não há sinalização – do planeta.
Saíramos para visitar uma escola primária, um orfanato, uma cooperativa organizada por mulheres, uma galeria fotográfica, um museu dedicado à desminagem e um campo de refugiados. Ou o jardim zoológico, com as suas matilhas de lobos esqueléticos e os seus bandos de abutres. Numa das pouquíssimas noites em ficámos pela cidade, fomos ao festival de cinema – patrocinado pela embaixada norte-americana – dedicado à apresentação de jovens realizadores afegãos. A nossa deambulação mais animada foi ao Skatistão, um recinto coberto onde se pratica skate.
Tivemos cerca de quarenta reuniões com professores, jornalistas, editores, empresários sociais e o pessoal de várias organizações não-governamentais – afegãos, americanos de ascendência afegã e pessoas de outras nacionalidades. A cada encontro, cauteloso ou franco, desconcertante ou revelador, ficávamos com mais uma peça (ficcional?) do puzzle. Entrevimos complexidades e contradições – e tragédias –, algumas das quais estão para além da nossa imaginação almofadada.
Viajei ao Afeganistão na esperança de saber o que pensam os seus habitantes acerca dos drones Reaper (aviões não-tripulados controlados à distância). Eu penso que constituem um acto de cobardia. A Base Aérea de Hancock, em Syracuse, treina os técnicos responsáveis pelas operações que envolvem estes caçadores e assassinos robóticos, sendo que alguns destes são pilotados a partir de Syracuse. Por conseguinte, a guerra aérea no Afeganistão é conduzida a partir do meu quintal. Pensei então que seria possível conhecer alguns dos sobreviventes dos drones; mas o pessoal do Hospital de Urgências -não-fazemos-perguntas- de Cabul, especializado em ferimentos de guerra, disse-nos que as vítimas dos Reaper eram tratadas – na melhor das hipóteses – nos locais onde estes operam. Ou seja, locais onde os ocidentais não se atrevem a ir.
Poucos são os nossos contactos em Cabul que parecem interessados pelos drones. Um funcionário de uma organização não-governamental confirmou que os drones matam civis, mas, tcham, tcham, tcham... também destroem madrassas. Estremeci perante a impassibilidade deste funcionário: os camponeses afegãos serão bem menos indiferentes face a este terrorismo aéreo.
Alguns dos encontros que tivemos foram estimulantes. Passámos uma hora com Malalai Joya (um pseudónimo), uma jovem que mede pouco mais de metro e meio e que só sobrevive (com guarda-costas) mudando constantemente de morada. Malalai Joya foi eleita deputada ao Parlamento por uma circunscrição remota, tendo caído em desgraça junto dessa augusta instituição por ter denunciado vários crimes de guerra que implicavam alguns dos seus colegas. Tal notoriedade conduziu-a a campanhas de denúncia internacionais e traduziu-se em tentativas de assassinato.
Aquando do nosso encontro com Joya, só soubemos do lugar onde nos íamos encontrar momentos antes, por telemóvel. Encontrámo-nos com dois homens armados num desses complexos que os mapas não assinalam e que ficam em ruas sem nome (como é hábito em Cabul): um deles, de arma em punho, permaneceu mais afastado, enquanto o outro, para confirmar que não tínhamos armas dissimuladas, revistou-nos, tirou-nos fotografias com as nossas máquinas fotográficas e escreveu com as nossas canetas.
Este não é o lugar para partilhar as observações de Joya ou para dar conta da solicitude e da coragem que irradia. Basta-nos afirmar que ela não é uma dessas pessoas que considera os seus interesses enredados com os interesses daqueles que ocupam o seu país; leiam a sua autobiografia, A Jóia Afegã. Uma Mulher entre os Senhores da Guerra [publicada em Português pela QuidNovi, 2010].
O tronco do Elefante
Para começarmos a compreender esta terra desterrada, teremos de visitar a sua movimentada capital. No entanto, Cabul só oferece uma imagem incompleta, e, decerto, distorcida, deste país.
Decidimos não desprezar a segurança que nos pudesse ser oferecida numa cidade como esta, tão tensa quanto militarizada. Mas este constrangimento revela quão ilusórias são as proclamações de “progresso” emitidas pelas forças armadas norte-americanas ao longo dos últimos dez anos; isto apesar dos biliões de dólares aqui malbaratados, dos órfãos forçados, dos milhares de deficientes e dos milhares de vidas ceifadas.
Pelo que entrevimos nos campos afegãos, a capital assemelha-se pouco ao interior. Só podemos imaginar um elefante se pudermos ver o seu tronco. Ou, então, pudemos tentar compreender os EUA através de uma visita a Washington ou a Nova York... Ou, a propósito, visitamos apenas Syracuse.
A cidade de Cabul, cheia de refugiados nacionais, albergará agora um quinto da população do Afeganistão. Os equipamentos sociais não são os mesmos que existem no interior; nem as prioridades, os interesses urbanos, ou sequer as questões de segurança, reflectem as prioridades e os interesses das áreas rurais onde vive o maior número de afegãos.
Insisto neste tópico porque fui apanhado de surpresa pelo número de defensores da presença militar norte-americana que conheci em Cabul. Alguns temem o caos caso estas forças se retirem e se auto-dissolva o governo-fantoche – segundo um antigo adjudicatário da embaixada norte-americana, tal “aconteceria no espaço de três dias”. É o receio da eclosão de uma guerra civil – isto como se, durante anos, o invasor não tivesse apoiado os senhores da guerra fundamentalistas, fomentado a corrupção, acirrado os ódios inter-étnicos, subornado os talibans, realizado raides nocturnos, prendido e torturado jovens... E testando a aplicação de tecnologias de ponta aos seus armamentos.
Há quem tenha muito a ganhar com a situação, especialmente entre as organizações não-governamentais. E porque não? Até agora, tudo parece ter corrido às mil maravilhas para aqueles cujos proventos têm uma origem internacional. Sem o invasor não há regalias. Mas não deixo de cismar acerca da opinião dos camponeses afegãos – brutalizados pelos invasores e por aqueles que resistem aos invasores. De que modo se vislumbrará essa opinião desconhecida se estamos confinados a Cabul?
A caminho de casa, as escassas semanas que passei no Afeganistão atingem-me com o que já sei: os contribuintes norte-americanos têm que confrontar a nossa cumplicidade no terror militarista do nosso país. Na véspera do décimo primeiro aniversário da guerra do Afeganistão, temos de sair das nossas bolas de sabão irisadas. Temos de parar de desviar o olhar.
Ed Kinane foi um dos trinta activistas acusados, no início de Novembro, de terem “morrido”, no passado mês de Abril, às portas do portão principal da Base Aérea de Hancock, perto de Syracuse, na sequência dos protestos contra o uso de“drones”.
http://www.truth-out.org/thirty-days-kabul-or-afghanistan-seen-through-keyhole/1316023077
Tradução de Pedro Silva Sena para o Esquerda.net
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