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A bagunça dos EUA no Afeganistão

Foram certamente os Estados Unidos da América que optaram por invadir o Afeganistão. E foram os Estados Unidos que manipularam o Conselho de Segurança das Nações Unidas para aprovar uma resolução que parecia apresentar uma justificação para a sua guerra impossível de vencer. Por Brian Cloughley
Patrulha britânica-afegã. Foto de balazsgardi

No decorrer da pesquisa para um ensaio sobre as relações EUA-Paquistão, deparei-me com um discurso proferido pelo presidente Obama, em Março deste ano, intitulado “Uma Nova Estratégia para o Afeganistão e o Paquistão”. Era interessante e bastante esclarecedor, se bem que mal informado e encantadoramente ingénuo, mas a frase fascinante que me fez arregalar olhos foi a afirmação de que “Os Estados Unidos da América não escolheram travar uma guerra no Afeganistão”.

É um pouco como se nos dissessem que “Hitler não provocou a Segunda Guerra Mundial” ou ler uma manchete de jornal a dizer “Político Republicano Diz a Verdade” ou “Netanyahu afirma que os árabes são humanos”. Mas a afirmação de Obama era ainda mais bizarra.

Ninguém puxou os Estados Unidos pelas orelhas e lhe ordenou que enviasse forças especiais para a região de Tora Bora no Afeganistão, a 7 de Outubro de 2001, juntamente com algumas dezenas de parceiros britânicos e uma série de sortudos, desleixados, e agora ricos, senhores da guerra afegãos que custaram milhões de dólares à CIA em enormes pacotes selados e, em seguida, se sentaram sobre o seu dinheiro e não fizeram nada – até enviarem o dinheiro para o Dubai e para Genebra, cortesia do corrupto Banco de Cabul. O principal actor nesta farsa (que é o que, infelizmente foi, apesar de casos de conduta excepcionalmente corajosa por parte de soldados norte-americanos e britânicos; tive uma descrição da operação em primeira mão, mas infelizmente não a posso relatar devido à Lei dos Segredos Oficiais do Reino Unido) foi a Casa Branca. O patético britânico Blair manteve-se fiel ao seu estilo, desesperado para ser fotografado junto ao risonho Bush.

Foram certamente os Estados Unidos da América que optaram por invadir o Afeganistão. E foram os Estados Unidos que manipularam o Conselho de Segurança das Nações Unidas para aprovar uma resolução que parecia apresentar uma justificação para a sua guerra impossível de vencer.

Dois investigadores da Câmara dos Comuns britânica produziram um documento intitulado “A Base Jurídica para a Invasão do Afeganistão”. Esses analistas não são liberais bem pensantes; são inteligentes, assessores independentes, de facto. E escreveram: “A campanha militar no Afeganistão não foi especificamente mandatada pela ONU – não existia uma Resolução do Conselho de Segurança específica a autorizar a invasão – foi antes amplamente (mas, não universalmente) entendida como uma forma legítima de auto-defesa ao abrigo da Carta das Nações Unidas”.

E dezenas de nações foram convocadas para lhe dar uma fachada falaciosa de quase-legitimidade. Todas elas foram enganadas – ou optaram por ser manobradas – para verterem sangue, desperdiçarem vidas jovens e fortunas pela ridiculamente chamada “Operação Liberdade Duradoura”.

Enquanto escrevia esta crónica, fui ao sítio da web icasualtiese vi que mais jovens soldados estrangeiros foram mortos. Rapazes de 19 e 20 anos estão a morrer no Afeganistão para …para quê? Não há nomes de soldados afegãos, é claro, porque não interessam ao Ocidente – não mais do que as mortes de soldados paquistaneses interessam aos generais e aos políticos ocidentais que insistem: “O Paquistão tem de fazer mais para combater o terrorismo”. O que eles querem dizer é que ainda mais soldados do exército do Paquistão e do Corpo de Protecção da Fronteira devem sacrificar as suas vidas, a fim de facilitar a vida ao Ocidente para afirmar que as coisas estão a melhorar na sua catástrofe afegã.

Se não tivesse havido invasão do Afeganistão por tropas estrangeiras, o Paquistão não estaria na situação terrível em que se encontra agora. Os fanáticos atravessaram a fronteira e encontraram refúgio entre as tribos Pushtun sem lei, primitivas, mas culturalmente hospitaleiras, que na época estavam a ser encorajadas, visivelmente com pouco sucesso, a juntarem-se ao ideário paquistanês dominante. Mas os militantes deslocados encetaram campanhas enérgicas de propaganda e de ódio, e, em seguida, provocaram a devastação entre os nativos submetendo-os a uma lavagem ao cérebro para incutirem a sua própria marca de caos diabólico.

O Paquistão não tinha atentados suicidas até 1995, quando um cidadão egípcio tentou dirigir um camião-bomba para a sua embaixada em Islamabad. Não houve outros ataques de fanáticos religiosos sectários até 2005, ano em que houve dois. Mas então, a guerra conduzida por estrangeiros no Afeganistão estava realmente em marcha e, em 2007, houve mais de cinquenta atentados suicidas no Paquistão, a maioria dos quais dirigidos directamente às forças militares. Desde aí tem sido uma indústria monstruosa em crescimento hediondo. No ano passado, cinquenta atentados mataram mais de 1.100 pessoas e, até agora, este ano, a contagem vai em 500 inocentes mortos.

Obrigado, Operação Liberdade Duradoura. E obrigado, também, Estados Unidos da América, pela morte de mais de 3.000 soldados do exército do Paquistão e do Corpo de Protecção da Fronteira, porque nenhum deles teria sido morto se não fosse a vossa guerra no Afeganistão.

O governo eleito de forma fraudulenta, e sancionado pelos EUA, e as forças militares estrangeiras que o apoiam lamentam-se de que o Paquistão não seja capaz de controlar a circulação de militantes de e para o Afeganistão e, de facto, é impossível ao Paquistão fazê-lo – como os EUA sabem muito bem, mas não o vão admitir. Através de sua própria fronteira vedada e fortemente patrulhada com o México, que custa anualmente 6 mil milhões de dólares a manter e tem mais de 20.000 agentes de fronteira, passam centenas de milhares de imigrantes ilegais e milhares de toneladas de drogas por ano.

Ignorando a bagunça transfronteiriça à sua porta, os EUA exigem que o Paquistão disponibilize os seus soldados para invadirem o seu serviço de fronteiras tribal, no Norte do Waziristão, para combaterem militantes que – sem dúvida – atravessam a fronteira para o Afeganistão para lutarem lá.

Esta operação – ou melhor, esta longa série de operações, porque levaria anos a preparar – exigiria cerca de 60.000 soldados, dos quais mil seriam mortos em dois anos, que seria o tempo que duraria a campanha. Haveria pelo menos 3.000 soldados feridos do exército do Paquistão e do Corpo de Protecção da Fronteira, com centenas deles mutilados para a vida. Haveria milhares de viúvas e de órfãos e pais e famílias enlutadas.

O objectivo dos EUA e dos seus, cada vez menos, adeptos internacionais no Afeganistão não é a maior estabilidade no Paquistão – porque uma operação militar no Norte do Waziristão aumentaria exponencialmente o número de ataques suicidas, e não só, por todo o país. 'O seu objectivo é tornar mais fácil poderem afirmar que a sua guerra no Afeganistão está a correr bem, como parte da “Nova Estratégia para o Afeganistão e Paquistão” do presidente Obama. O custo económico e social seria enorme em todo o país.

Acha o Paquistão que vale a pena pagar este preço?

 

***

O Chefe do Estado-Maior dos EUA, o almirante Mullen, afirmou inequivocamente a 22 de Setembro que o governo e as forças armadas do Paquistão “usam o extremismo violento como instrumento político” e foram responsáveis pelo recente ataque à embaixada dos EUA em Cabul, bem como pelo “ataque de 28 de Junho contra o Hotel InterContinental em Cabul e uma série de outras operações menores, mas eficazes.”

Ora, Mullen não tem uma inteligência por aí além e tem feito muitas declarações tolas desde que alcançou uma posição em que acha que pode chegar às manchetes fazendo declarações bizarras, mas mesmo para ele, isto ultrapassou as marcas. Afirmou também que o governo, os Serviços de Informação e o exército do Paquistão mataram, ou querem matar, cidadãos americanos. Declarou que o Paquistão “põe em risco não só a perspectiva da nossa parceria estratégica, mas também a oportunidade de o Paquistão ser uma nação respeitada, com influência regional legítima”.

Destruiu totalmente qualquer minúscula confiança que pudesse ainda existir entre a América e o Paquistão.

Então, surpreendentemente, por um lado, declara que o Paquistão é um pária internacional, que não é fiável a nenhum título e depois diz: “Com a ajuda do Paquistão, desmantelámos a al-Qaeda e a sua principal liderança nas regiões fronteiriças e diminuímos a sua capacidade de planear e conduzir ataques terroristas”. Isto é tão disparatado e irrealista que é de perguntar se terá tomado uma caterva de uísques antes de entrar para a Comissão legislativa perante a qual testemunhou.

E vou dizer a Mullen algo que ele não sabe: sim, a agência dos serviços de informação do Paquistão tem ligações com os extremistas. A Direcção dos Serviços de Informação Interna mantém contacto com todo o tipo de organizações lunáticas, desumanas e diabólicas. Talcomo a CIA o faz. Fá-lo, porque sabe que as pessoas desses grupos são cruéis, poderosas e extremamente perigosas e porque quer ter controlo sobre o que fazem e, se possível, envolvê-los em negociações em nome do governo. Talcomo a CIA fez com, por exemplo, o lunático e mortífero Kadaffi da Líbia.

As proclamações estapafúrdias de Mullen reduziram ainda mais a credibilidade dos EUA no Paquistão, o que era de prever dado o que o seu chefe, o secretário da defesa Panetta, tem vindo a debitar.

Os EUA estão a ameaçar invadir o Paquistão, em vez de apoiarem as extremamente delicadas negociações em curso com membros tribais e outros fanáticos nas regiões ocidentais do país. A intenção ficou clara quando Panetta, referindo-se ao pretenso apoio do Paquistão às operações de militantes no Afeganistão, declarou que “Nós não vamos permitir que esses tipos de ataques continuem.”

Se imaginam que enfrentar o Exército do Paquistão será uma tarefa simples, como no caso dos iraquianos, bem podem mudar de ideias. Se as forças dos EUA tentarem uma incursão no Paquistão, no Norte do Waziristão ou em qualquer outro lado, vão enfrentar resistência, não apenas das tribos e dos militantes, mas de um exército orgulhoso e profissional que não aceitará a flagrante violação da soberania nacional. Eu sei que o Exército do Paquistão, e afirmo-o categoricamente, de homem para homem, esmagará qualquer adversário, não importa que o céu fique coberto de bombardeiros dos EUA.

Será que os Estados Unidos da América acham que vale a pena pagar este preço?

http://www.counterpunch.org/2011/09/23/americas-shambles-in-afghanistan/

Tradução de Paula Coelho para o Esquerda.net

(...)

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