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Educratismo: as falsas evidências

O programa educativo de Crato é agressivo e implica transformações substanciais na forma como concebemos a educação e a missão da escola. Mas muito do que diz cola nas representações das pessoas. Para recuperar a hegemonia, a esquerda precisa de ir à luta contra estas falsas evidências.

Nuno Crato, o ideólogo do discurso regressivo sobre a escola pública, tem tido, para muita gente, o benefício da dúvida. Uma das razões será talvez a retórica pouco conflitual que o ministro tem utilizado (“queremos negociar” , “não queremos tomar decisões precipitadas”, “é uma proposta a ser discutida”...). Mas a razão principal é provavelmente mais funda. O programa educativo de Crato é agressivo e implica transformações substanciais na forma como concebemos a educação e a missão da escola. Mas muito do que diz cola nas representações das pessoas. Nos últimos anos esta ideologia foi penetrando no discurso do dia-a-dia e constitui hoje parte significativa do senso comum educativo. Para recuperar a hegemonia, a esquerda precisa de ir à luta contra estas falsas evidências. Eis algumas.

1. “Sabe-se cada vez menos. Dantes a escola é que era boa. A solução é voltar à transmissão e aos conhecimentos básicos”

Esta é uma ideia quase intemporal. A geração anterior a Crato dizia-o sobre a escola dos nossos pais, e os pais dessa geração já o diziam sobre os nossos avós. A ideia segundo a qual só voltando a um modelo de escola construído há mais de um século se pode conseguir que as pessoas aprendam mais, que os professores se sintam dignificados, que os alunos se sintam valorizados e felizes, não faz sentido. A verdade é que a investigação disponível mostra não apenas que há hoje muito mais gente com competências básicas que dantes só uma minoria desenvolvia (porque a escola se democratizou), como os jovens têm hoje muito mais conhecimento e em domínios muito mais diversificados. A ideia de retroceder à escola do aprender a “ler, escrever e contar” é uma ideia regressiva que visa expurgar a escola de qualquer experiência que vá para além da transmissão de conhecimentos do “cânone”, como por exemplo o pensamento crítico, o exercício da cidadania ou a participação social. Acontece que esses domínios fazem parte do compromisso democrático assumido pela escola pública. Quando Crato diz que “estamos a bater nos mínimos”, está apenas a exibir a sua própria ignorância.

2. “Os exames são a única forma rigorosa de avaliar”

Um dos paradoxos do discurso neoliberal e neoconservador sobre a escola é que aparenta uma grande preocupação pelas aprendizagens mas parece que a única proposta firme que tem para as melhorar é a multiplicação dos exames. Acontece que os exames não ensinam nada, só avaliam, e portanto nunca são eles que promovem a aprendizagem. Não se trata apenas de reproduzirem desigualdades e serem insensíveis ao esforço e ao percurso feito pelos estudantes. É que ao contrário de outras formas de avaliação, eles são impermeáveis à complexidade e, também por isso, são a forma mais facilitista de avaliação. Os velhos exames surgem neste discurso como o grande regulador do trabalho dos alunos e professores: mais do que aprender um conteúdo, deve ensinar-se a responder ao exame. Ao mesmo tempo que o discurso cratista acusa o Estado de exercer excessivo controlo sobre as escolas, que devem ser “autónomas” para gerir a sua “oferta” e funcionamento, procede a uma avassaladora homogeneização de cada sala de aula por via do controlo dos exames a nível nacional. Uma escola de rigor e exigência, pelo contrário, tem de respeitar o processo de aprendizagem e tem de ser ambiciosa nas formas de avaliação.

3. “A autoridade dos professores assenta no seu papel de transmissores de conhecimento. É preciso exames que avaliem a competência científica dos professores para restaurar a sua autoridade”

Num contexto em que a escola é apenas uma entre as várias formas de acesso ao conhecimento (e nem sempre a mais rica e nem sempre a mais interessante) e num mundo em que a informação está à distância de um clique, seria uma pobre visão confinar o papel dos professores à triste e desinteressante missão de transmitir conhecimentos. Pelo contrário, o reforço desse papel acentuará identidades profissionais que só podem entrar em crise na escola dos dias de hoje. A desvalorização completa do professor enquanto mediador pedagógico, subjacente à ideologia cratista, mina realmente a possibilidade de se conceber o professor enquanto intelectual que constrói, interpreta e enquadra o conhecimento e enquanto pedagogo. E isso sim destruirá a sua autoridade.

4. “Na escola brinca-se de mais e aprende-se de menos. A escola transformou-se num parque infantil”

Nunca as crianças e os jovens trabalharam tanto como hoje e nunca o horário escolar foi tão prolongado. Um estudo recente mostrava que as crianças, só no primeiro ciclo, tinham mais de 40 horas de trabalho escolar, se contabilizarmos os TPC, as actividades de apoio ao estudo e as áreas de enriquecimento curricular. Na verdade, nunca se brincou tão pouco. A tendência é aliás a da escolarização cada vez mais precoce. A transformação do jardim infantil em “pré-escolar” e do tempo da infância num tempo a ser instrumentalizado pela escola são sinais preocupantes que deveriam pôr em alerta pais e educadores.

5. “A escola não tem de dar tudo igual a todos. Para promover a excelência é preciso ter vias diferentes para alunos diferentes”

O respeito do princípio da igualdade e a consideração das diferenças sempre foi uma tensão na escola pública. De acordo com aquele principio, a diversificação é positiva se não for fonte de desigualdades e deve ser evitada se as reproduzir. O que a ideologia cratista propõe é que abandonemos o princípio da igualdade como orientador da escola pública, estratificando o sistema em vias diferenciadas de acordo com o mérito dos alunos. Ou seja, que o Estado assuma não a diversidade mas a desigualdade como princípio. A recuperação da dualização educativa e da estratificação interna é uma espécie de apartheid de classe que opera através da criação de duas vias com diferentes valorizações sociais: a via profissionalizante, para os filhos das classes populares, em que se produz mão-de-obra barata destinada aos segmentos mais instáveis do mercado de trabalho e, no outro pólo, as vias de prosseguimento de estudos, que desenvolvem competências destinadas a formar a mão-de-obra dos sectores estáveis e qualificados do mercado. A ideia é, de facto, que estas experiências não devem ser parte do percurso de todos e de que a excelência (vista de forma altamente limitada), “por natureza”, não pode ser universal.

A este conjunto de ideias poderíamos somar mais umas quantas. Por exemplo, sobre o “eduquês”, as “ciências da educação” (que, na realidade, nunca entraram verdadeiramente nas escolas) ou a necessidade de “lideranças fortes”. Para que o projecto da escola pública seja forte, é preciso ir à luta contra cada uma destas ideias. Se não queremos que a escola pública seja colonizada pelo neoliberalismo, há um imenso trabalho de hegemonia por fazer. Só uma esquerda exigente e comprometida está em condições de o levar por diante.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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