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Quando o telefone toca

Afinal para poupar gastos intermináveis em comissões infrutíferas, basta um telefonema, gratuito como se quer, para pôr a nu as fragilidades de um sistema, neste caso a emergência médica.

Necessidade “fabricada” nos últimos anos, o telefone tornou-se uma poderosa ferramenta. Para além da visão do seu próprio criador, este meio de comunicação aproxima famílias, dinamiza negócios e enraíza-se como um vício no quotidiano de cada um de nós.

Serve, descobre-se também agora, para que governos possam, de forma “baratuxa” e pouco estruturada, avaliar serviços públicos. Afinal para poupar gastos intermináveis em comissões infrutíferas, basta um telefonema, gratuito como se quer, para pôr a nu as fragilidades de um sistema, neste caso a emergência médica.

A ideia, se na sua génese era colocar a nu as fragilidades de um CODU que fruto da chacina perpetrada pelas últimas legislaturas, viu-se privada de meios e recursos humanos, resultou. E permite recolher inspiração futura.

Antes de mais, sendo admissível o abuso do serviço público para fins lúdicos, poderiam os cidadãos deste país telefonar para as respectivas repartições de finanças e centros de segurança social informando da cessação do seu pagamento. Apenas com o fim de perceber como funcionariam sem a receita (cada vez mais pesada) que escrupulosamente depositam mensalmente. Legítimo, afinal o telefonema é a ferramenta da moda, e o tempo livre de desempregados custa a preencher.

Fora esta ferramenta servir de entretenimento ao cidadão comum, quiçá regozijando-se com um certo gosto anarquista, poderia inspirar governantes curiosos sobre os mais diversos temas. Se nos remetermos à área da saúde, um telefonema bastaria para averiguar factores ainda mais intrigantes do que o funcionamento da resposta do INEM.

Permitiria que do outro lado da linha se expressasse alguém que recusa uma visita hospitalar pois não tem recursos para o transporte, permitiria que um cidadão que recorre continuamente a um serviço de urgência hospitalar explicasse que simplesmente não tem recursos para adquirir a medicação que garantiria alguma qualidade de vida. Permitiria perceber que há crianças que são alimentadas com o que é possível e não com o que é necessário, permitira constatar que há falta de informação, falta de protecção social, falta de resposta para uma população que desiste cada vez mais de as procurar.

E se um telefonema somente permite questionar o empenho de profissionais dedicados e avaliar um serviço, também deveria permitir que os governantes curiosos se julgassem a si próprios. Que pegassem no seu “brinquedo de ocasião” e percebessem o efeito da austeridade que impõem, da precariedade que preconizam, da falta de condições de vida dignas que instigam.

Tenha sido Bell ou Meucci ou a criar o telefone, ambos idealizaram uma forma de comunicação recíproca. Quando digitamos um número, quando ouvimos os mais ou menos melódicos acordes enquanto não há resposta, é indispensável a abertura para esperar o inesperado. Do outro lado da linha surgirá uma resposta que poderá não se enquadrar no expectável à partida.

Este é o desafio: saber escutar o telefonema, em vez de falar apenas e julgar. Mais ainda; o desafio é ter a coragem de fazer os mais diversos telefonemas, sobretudo para números nunca antes tentados, números com respostas imprevisíveis. E na casa de cada um, que com o seu esforço sobrevive a uma austeridade cega, estarão respostas que poucos terão coragem de ouvir.

A chamada para o 112 não é inocente, era esperado um mau funcionamento, depois de cortes orçamentais, depois do despedimento de enfermeiros e substituição por técnicos mais económicos, depois de um abandono da garantia de funcionamento das VMER. O que pode não ser esperado será o “basta” do cidadão comum, ao desperdício público, à crueldade social.

Ouviremos o telefone do cidadão comum a tocar?

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