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E o crescimento, para quê?

O crescimento da actividade económica não deve ser o objectivo de uma economia socialista ou em transição para o socialismo.

Num momento em que as políticas de austeridade redistribuem riqueza dos pobres para os ricos e destroem a actividade económica, parece uma loucura colocar em questão o crescimento económico como objectivo político. Afinal, a crítica comum às políticas de austeridade, de cariz keynesiano, é a de que estas políticas travam o crescimento económico, agravando a recessão. Permitam-me, contudo, defender que o crescimento da actividade económica não deve ser o objectivo de uma economia socialista ou em transição para o socialismo.

Antes de mais, um esclarecimento. Não contesto neste momento a necessidade de recuperar o aparelho produtivo destruído pela voracidade neoliberal que tem percorrido a Europa ou a necessidade de gerar os meios financeiros que nos permitam pagar a dívida e estabilizar as contas públicas. Nesse sentido, concordo com a crítica keynesiana ao “austeritarismo”. Mas a exigência de encontrar respostas para a política concreta e imediata não nos deve desviar da necessidade de reflexão sobre que tipo de sociedade queremos construir, indo além da postura reactiva que acabamos por adoptar aquando de uma ofensiva neoliberal como a que atravessamos. Discutamos então o crescimento como objectivo político.

As preocupações com as consequências nocivas que a expansão do comércio poderia ter na sociedade são tão antigas quanto o próprio comércio. Na Grécia antiga essa era uma preocupação comum e podemos encontrar em Aristóteles uma das críticas mais antigas à ideia de que a acumulação ilimitada de bens materiais não deveria fazer parte da “boa vida”. Para o filósofo, era evidente que a riqueza não é o bem que perseguimos.

Ainda na obra de Aristóteles, encontramos uma distinção entre economia e crematística, sendo que a primeira diz respeito à provisão dos bens necessários à vida feliz e virtuosa e a segunda se resume à acumulação de riqueza. A crematística distingue-se ainda entre a natural, necessária à boa vida, e a artificial, que consiste na acumulação ilimitada de bens e propriedade. Para Aristóteles, a invenção da moeda e a intensificação das trocas comerciais levariam à degenerescência da economia na crematística artificial.

Foi com base na teoria económica aristotélica que Marx estabeleceu a importante distinção entre valor de uso e valor de troca. Mais importante ainda para os propósitos desta discussão, enquanto sistema económico, o socialismo é definido como um sistema que se baseia na produção de valores de uso, por oposição ao capitalismo, que depende da produção de valores de troca. O socialismo, defendia ainda Marx, é a sociedade do ser, por oposição à sociedade do ter.

Mas Marx deixa-se deslumbrar pela máquina de produção capitalista, ao ponto de ter colocado no mesmo saco o socialismo e a expansão das forças produtivas. Tragicamente, esta foi a parte do seu pensamento que sobreviveu nos manuais da ortodoxia marxista, tendo sido ignorada a sua crítica ao produtivismo enquanto ideal anti-social e anti-ecológico.

Um contemporâneo de Marx, contudo, levou até às últimas consequências a sua crítica ao produtivismo, tendo argumentado a favor de uma sociedade de crescimento zero. O economista liberal John Stuart Mill defendeu nos seus Princípios de Economia Política que “(...) o melhor estado para a natureza humana é aquele em que, embora ninguém seja pobre, ninguém deseja ser mais rico, nem tem qualquer razão para recear ser puxado para trás pelos esforços de outros para se empurrarem para a frente”1. Ao definir a sociedade ideal como aquela em que a redistribuição se torna mais importante que a produção, Mill aproximou-se do ideal socialista que tanto criticou.

Esta é, portanto, a essência da crítica moral ao crescimento da produção e do consumo além de um patamar considerado essencial para que toda a gente tenha uma boa qualidade de vida: a noção de que a acumulação de riqueza ilimitada alimentada pela concorrência corrói valores que deveriam ser estimados socialmente. Mas o surgimento do movimento ecologista moderno trouxe uma outra dimensão à crítica do “crescimentismo”, baseada na constatação de que a expansão exponencial do consumo e da produção nas décadas do pós-segunda guerra mundial implicou um crescimento também exponencial no consumo de recursos.

O pensamento eco-socialista incorporou sem grandes dificuldades a crítica ao crescimento, interpretando-a como uma crítica ao sistema capitalista. Como explica Chris Williams, autor do recente livro “Ecology and Socialism”, numa entrevista à revista Counterpunch, o capitalismo não pode ser sustentável porque se baseia na expansão constante da produção2. A necessidade de expansão constante faz parte do código genético do capitalismo, na medida em que resulta da corrida pelo lucro, uma corrida em que vence quem conseguir vender mais, independentemente da utilidade do produto.

Ora, a expansão da produção implica a expansão do consumo de energia e de recursos, assim como da poluição. Os ganhos de eficiência, por muito consideráveis que sejam, são largamente insuficientes para anular esta tendência, como os dados históricos demonstram inequivocamente. De onde decorre que uma sociedade sustentável é aquela em que a produção, o consumo, a acumulação de capital, em suma, a crematística, é limitada. Apenas uma sociedade socialista o pode fazer de forma justa e democrática, como têm argumentado socialistas contemporâneos como Pat Devine ou John O'Neill.

A boa notícia é que a colocação de limites à produção não tem de implicar qualquer sacrifício de bem-estar. De facto, os dados quantitativos demonstram como a acumulação de riqueza apenas leva a uma melhoria nos indicadores que usualmente recorremos para avaliar o bem-estar das populações, como a esperança média de vida, a mortalidade infantil, a instrução ou até o nível de felicidade auto-reportado, dentro de um intervalo limitado. Para além desse intervalo, a tendência é para estes indicadores se manterem constantes à medida que o PIB aumenta. Mais de dois milénios depois, a estatística confirma a intuição de Aristóteles, na medida em que nos permite claramente diferenciar a crematística natural e artificial.

Uma sociedade socialista sustentável é uma sociedade em que, colectivamente, consumimos menos e produzimos menos do que actualmente. É uma sociedade em que usamos transportes colectivos em vez do transporte individual, em que um telemóvel ou um computador dura uma vida, em que não temos a casa cheia de coisas de que não necessitamos, em que o consumismo dá lugar à partilha e o espaço público substitui de novo o centro comercial como zona de lazer privilegiada. É uma sociedade na qual todos/as têm acesso ao que é essencial para viver bem, num sentido lato da palavra “essencial”, mas ninguém tem o luxo de viver melhor à custa de outros/as ou da natureza da qual dependemos. Em suma, é uma sociedade em que impera a economia do “suficiente”, em vez da economia do “mais”.

Atrevo-me a dizer que esta é uma sociedade melhor. Atrevo-me até a defender que este não é um grande atrevimento. Afinal, será um pouco estranho um socialista hoje, perante a crise ecológica que atravessamos, contentar-se com defender uma melhor distribuição da produção, não indo mais além para também defender o fim do produtivismo.

1 Texto do capítulo “On the stationary state” disponível em http://www.efm.bris.ac.uk/het/mill/book4/bk4ch06

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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