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Refrão

O investimento público na área da criação artística foi sempre feito com as sobras e de acordo com as conjunturas mais ou menos excepcionais que nos foram sendo proporcionadas.

Desde Dezembro do ano passado despedi ou comuniquei o despedimento a seis pessoas nas duas estruturas de criação e produção artística a que estou ligado. A quem se atrever a pensar que se trata de um número pequeno, comparado com os milhares de novos desempregados que o país ganhou no mesmo período, desafio a vir dizer isso mesmo na cara de cada uma destas seis pessoas. Dizer-lhes que elas apenas tiveram azar, que lhes calhou, desta vez, o lado amargo das estatísticas. Dizer-lhes que a sua situação não é mais do que um sintoma da crise que afecta o mundo inteiro e até, quem sabe, que elas apenas estão a ser chamadas a fazer um esforço um pouco mais visível que o dos seus compatriotas na gloriosa cruzada contra a dívida soberana em que estamos envolvidos.

Quando, aos 34 anos, passamos a ser responsáveis por mais despedimentos do que por novos postos de trabalho criados, é inevitável que nos interroguemos sobre a nossa competência profissional. Se verdadeiramente a situação nos incomoda, não podemos deixar de pensar no que poderíamos ter feito de outra maneira e, com as energias que nos restem, no que podemos ainda fazer para estancar esta sangria.

É o que me dedico a fazer por estes dias, entre cartas de despedimento e impressos para a segurança social e telefonemas para o contabilista sobre o cálculo das indemnizações. Um fardo leve, claro, quando comparado com os dos colegas de trabalhos que deixo pelo caminho. Um fardo que não teria por que partilhar se sentisse que se tratava de um caso isolado, que resultasse apenas da minha inépcia enquanto gestor.

O problema é que não é. Com maior ou menor intensidade e com maior ou menor urgência, a situação - que resulta directamente dos cortes orçamentais do ex-Ministério da Cultura - é vivida pela esmagadora maioria das companhias de teatro e de dança do país, pelas produtoras cinematográficas, pelas salas de espectáculo, pelas organizações de festivais, por todas aquelas estruturas de criação que um dia se sonhou poderem vir a sustentar um sector próprio em Portugal. O problema é que, sendo generalizado, o problema não é só meu nem das seis pessoas que despedi. O problema é que o problema é sobretudo nosso, de um país que abdicou, sem dar por isso, de proporcionar condições mínimas aos seus artistas para que desenvolvam o seu trabalho.

Dir-se-á que nada disto é novo nem exclusivo da criação artística. Todos os dias aquilo a que nos habituámos a conhecer como estado social sofre novos e inusitados ataques, que já não poupam sequer áreas que gostaríamos de considerar intocáveis - a saúde, a educação, a subsistência mínima - e que durante anos pudemos pensar apenas como partes de um refrão antigo, celebrado por anacrónico.

Parece não sobrar espaço nem disponibilidade mental para nos preocuparmos com outras coisas. Não é tempo, dir-se-á, de alargar o tal refrão. Tivéssemo-lo feito antes, quando as coisas corriam de feição e nos podíamos dedicar ao acessório.

Não o fizemos. O investimento público na área da criação artística foi sempre feito com as sobras e de acordo com as conjunturas mais ou menos excepcionais que nos foram sendo proporcionadas. A tal flor na lapela que gostamos de pôr mas de que podemos abdicar sem estragar o visual. É isso que faz com que hoje seja tão difícil falar do assunto. Nós próprias, pessoas directamente envolvidas na coisa mas que também têm de comer e pagar renda de casa, que adoecem e vão à escola, nos sentimos demasiadas vezes envergonhadas de chamar a atenção para o assunto. Nós próprias, pessoas de esquerda que sabem que há áreas que não sobrevivem sem a intervenção e o financiamento do Estado, abdicámos vezes demais de defender (pensando-o e discutindo-o) o interesse público da criação artística - o único e essencial fundamento para a sua necessária inclusão nas funções do estado social.

Não é tarde para o fazermos. Diria, até, que é a hora. Porque a arte permite que nos conheçamos melhor e que nos respeitemos mais, que sintamos uma necessidade crescente de nos entendermos uns com os outros. Ajuda-nos a adquirir a consciência de que a saída do buraco é uma passagem onde temos de caber todos. Caso contrário, mesmo que consigamos sair dele, sozinhos ou só com "os nossos", estaremos sempre a abrir novas valas e a atirar outros para elas.

A arte pode, sim, salvar o mundo. Se nós quisermos e deixarmos.

Como é que começava mesmo o tal refrão?

Sobre o/a autor(a)

Produtor cultural, Cidadãos por Coimbra
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