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A cidade e as trabalhadoras que iniciaram o derrube de Mubarak

É preciso que haja movimento de trabalhadores e sindicatos organizados para que as revoluções no Médio Oriente sejam bem-sucedidas? Mahallah é cidade feia, suja, triste – mas o seu lugar na história aumenta ano após ano.
Trabalhadoras da cidade de Mahallah, Egipto, em luta - 2008

A cidade de Mahallah, capital do algodão egípcio, esconde muito bem os seus saberes políticos.

Local de fábricas stalinistas que trabalhavam 24 horas por dia, casas arruinadas do século 19 enterradas entre blocos de cimento e uma rede de trilhos em cacos, só a aparição de uma barata impressionantemente grande no chão do escritório da câmara municipal agita os funcionários e os faz levantar. A barata e outra estranha criatura: este vosso correspondente, encharcado de suor, perguntando sobre uma greve na indústria que começou e acabou há cinco anos.

Cada vez que eu perguntava sobre a greve, alguém me perguntava se eu vira Mubarak naquela gaiola no Cairo. Supunham sempre que eu falasse das batalhas na Praça Tahrir, em Janeiro passado. Só começaram a entender quando entrou na sala uma das heroínas da Batalha de Mahallah, Widdad Dimirdash, vestida com o véu, super energética, voz alta e atitude de profundo orgulho. A senhora Dimirdash participou do comando de uma das primeiras grandes greves contra a empresa estatal (quer dizer: pertencia à família Mubarak) Misr Cotton Company, em 2006. 

“Não se pode dizer que tenha sido uma greve realmente política” – diz ela, mas não acredito. “Acho que não tivemos escolha. Os nossos salários haviam caído tanto e o preço da comida era tão alto que já ninguém nem comia nem vivia.” 

Dos 30 mil operários do algodão em Mahallah – homens e mulheres trabalhavam em fábricas separadas – 6.000 eram mulheres. Elas pararam de trabalhar quando os homens pararam. Tomaram as fábricas “de mulheres” e recusaram-se a sair de lá até que recebessem “massivo” aumento de salário: de £60 por mês, para £100, o que ainda as mantinha como os trabalhadores de mais baixo salário em todo o Egito. Mas o governo de Mubarak, em três dias, concedeu o aumento que as mulheres pediam.

Não teve escolha. Mahallah, centro do comércio egípcio de exportação, era grande demais para ser desafiada. “Primeira Cidade do Algodão do Delta” – lê-se numa placa enferrujada, quando passo de carro pelas calçadas rebentadas, montes de lixo e muitos carros “toc-tocs”, uma espécie de riquexó movido a petróleo que circula pela velha passagem de nível. A cidade não ostenta a própria história, mas a história parece pairar por ali, entre as ruínas. 

Introduzido na região pelos franceses em 1817, o algodão de Mahallah prosperou quando a guerra civil nos EUA cortou as vias transatlânticas das importações europeias, nos anos de 1860. Adeus, Sul Profundo. Bem-vindo, Delta do Nilo.

No dia 6/4/2008, contudo, o povo de Mahallah acrescentou mais uma nota de pé de página à própria história. Dessa vez, marcharam pelas ruas, negociando com um ministro do governo Mubarak, por melhores salários e condições de trabalho, e enfrentaram a violência dos policiais. A senhoraDimirdash foi uma das duas mulheres que participaram da equipa de negociação de sete trabalhadores. “As pessoas demarcaram campos na rua principal, a ‘Rua do Presidente’ – relembrou o jornalista Adel Dora. – “Os baltagi [mercenários pró-governo, armados com mocas] atacaram-nos com terrível violência; e a Polícia usou gás lacrimogéneo, mas muita gente defendeu-nos em todo o país, usando o Facebook”.

Só dois canais árabes de televisão por satélite cobriram a batalha de Mahallah. A imprensa egípcia, diz Dora, “simplesmente mentiu sobre nós – publicaram tudo o que o governo Mubarak queria que publicassem”. Os homens e mulheres da cidade mantiveram o movimento durante uma semana. 

Em 2009, tentaram novamente, mas dessa vez – e Dora baixou a cabeça ao dizer – o povo estava com medo. “Com medo da Polícia, de serem mortos, de mais violência, do que o governo pudesse fazer contra eles”. Dora falava com ira, mas, estranhamente, como se não percebesse o precedente que a cidade criara. Essa Mahallah sombria, sem brilho, em 2006 e em 2008, foi versão em miniatura, talvez prematura, da grande revolução que derrubaria o governo egípcio em Fevereiro de 2011 e mandou Hosni Mubarak para a gaiola com leito que se viu no Cairo esta semana. A união de homens e mulheres, trabalhadores comuns, o Facebook, as tendas armadas na Praça Tahrir, os mercenários baltagias bombas de gás lacrimogéneo da Polícia, tudo reapareceu depois, aos olhos do mundo, na Praça Tahrir. E naquela praça descobrimos – embora ninguém entendesse quem eram e o que faziam ali – muitos homens e mulheres de Mahallah. Ah, sim, eles sabiam o que fazer para derrubar o ditador. 

O jornalista francês Alain Gresh foi dos primeiros a perceber a plena significação de tudo isso: que aqueles trabalhadores eram “actores esquecidos” da revolução egípcia. Lembrou como um repórter industrial egípcio respondeu às suas perguntas no Cairo, perguntando: “Por que, até agora, as rebeliões na Líbia, no Iémen e no Bahrain falharam?” Poderia ter acrescentado à lista, a Síria. Mas foi na Tunísia, onde os sindicatos eram fortes, que o sindicato geral dos trabalhadores da Tunísia conseguiu finalmente derrubar a ditadura de Ben Ali. Nos últimos dias, o golpe final foi a greve geral que convocaram. Mas tampouco os homens e mulheres de Mahallah foram os únicos trabalhadores da indústria a conseguir derrotar o poder de Mubarak. 

Os operários do complexo de fábricas de cimento em Suez – que também fizeram a sua “revolução” miniatura em 2009, para protestar contra as vendas de cimento a Israel – iniciaram também a sua greve política em Fevereiro de 2011.

Quanto aos trabalhadores da Síria, Líbia, Iémen, há muito tempo foram cooptados, Baathizados, hipnotizados pelo Livro Verde ou tribalizados, com o socialismo tomado só como inspiração infeliz para muitos ditadores. Quer dizer então que é preciso que haja movimento de trabalhadores e sindicatos organizados para que as revoluções no Médio Oriente sejam bem-sucedidas? Mahallah é cidade feia, suja, triste – mas o seu lugar na história aumenta ano após ano.

Artigo publicado no jornal britânico The Independent, a 6/8/2011, traduzido pelo Coletivo da Vila Vudupara redecastorphoto.blogspot.com

Sobre o/a autor(a)

Jornalista inglês, correspondente do jornal “The Independent” no Médio Oriente. Vive em Beirute, há mais de 30 anos
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