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Complexo de Édipo & “Eu não nasci Mulher”, ora boicota lá isto!

Contributo de Bela Irina Castro

I Parte - Complexo de Édipo

Na minha opinião existem duas formas essenciais de luta: a luta social e a luta parlamentar. Isto consiste em considerar que a luta social e a luta parlamentar são como meios e não como fins.

Ambas a formas de luta são importantes na tomada de consciência sobre a condição material. Na luta parlamentar, aquilo que para mim diferencia um partido de esquerda, de qualquer outro partido parlamentar, é a sua existência como grupo de pressão, a favor das reivindicações sociais no seio do sistema parlamentar. Mas isso não pode significar que a única forma de obter massas seja através de uma maioria parlamentar. Fazer da acção parlamentar o centro da acção política, e por consequência, limitar a acçãorevolucionáriaa esse espaço, é na minha opinião uma alienação do que é a política, é “cretinismo parlamentar” vazio de força social.

A história demonstra-nos que nenhum partido chegado ao poder pelo sistema parlamentar instalou o socialismo, do mesmo modo nenhum partido que por uma conjuntura especifica tenha tomado o poder conseguiu colocar o Povo no poder.

Eu penso que este problema advém do erro de se confundirem, ou se saltarem as etapas evolutivas do movimento socialista, sob o nome da Esquerda Unida, e a perda das referências verbais à revolução. É importante não esquecer que a autenticidade dos objectivos revolucionários é, antes de mais, a tomada dos problemas e do futuro pelas mãos das massas. Só os partidos que tiverem uma grande influência entre as massas, e forem por elas influenciados, é que estarão à altura, numa conjuntura favorável, de fazer inclinar a balança a favor da revolução.

Hoje não somos esse partido. O que experimentamos hoje no Bloco não é uma situação excepcional devida a circunstâncias ocasionais momentâneas, mas o reflexo de práticas que se arrastam de trás, desde a nossa fundação.

A fundação do Bloco assentou na clareza quanto aos objectivos e perspectivas do partido. No entanto, à medida que o partido crescia quer em organização, quer no parlamento, deu-se um passo maior que a perna e saltou-se uma etapa evolutivas essencial, a criação da massa crítica de apoio.

De um modo caricatural, com o tempo passamos de partido de pressão no parlamento, para partido de pressão sobre as massas, com um grande custo para as bases e para a política do Bloco.

Isto significa não só, que começamos a agir numa lógica paternalista sobre a opinião da sociedade, mas também, a agir de uma forma prepotente sobre as bases do partido.

Neste momento, sou obrigada a discordar das palavras de Mário Tomé no seu texto “Ontem fui ao cinema, ver «Pina»”. Nenhuma decisão é estrita do grupo parlamentar, nem mesmo uma moção de censura. Isto porque, toda e qualquer decisão, seja ela qual for, tem reflexos no partido e nas massas e não pode estar alheia à opinião das mesmas.

O cretinismo parlamentar passa por acharmos que o grupo parlamentar (ou qualquer outra estrutura) é autónomo, quer dos e das camaradas que constituem o partido, quer das massas que eles representam. Para além de ser um erro conceptual é reflexo do paternalismo que as estruturas no topo da decisão do Bloco têm para com o partido.

Este paternalismo, este síndrome pós-parto de controlo, imposição e dominância sobre o partido é um agente limitante da acção política e da capacidade de transformação da sociedade. A ilusão de que hoje o partido necessita de protecção total, sendo por isso necessário reforçar os cuidados em torno de uma Tendência Maioritária, é na minha opinião o início da hostilização da forma de organização do partido e o reforço da diferenciação hierárquica das decisões actualmente existente.

Por outro lado, o medo da “castração política” que as diferentes correntes marxistas constituintes e fundadoras do bloco parecem ter, a par da qualidade de pai imaginário que lhes é atribuída, resulta na invisibilidade das suas decisões, bloqueia a autonomia das bases, domina a capacidade de construção de um pensamento colectivo socialista feminista.

Em última instância, esta visão levará a que os e as de baixo já não queiram e os de cima já não possam. Evitar este caminho é reflectir sobre ele. É assumir compromissos de mudanças e romper com o modelo heteronormativo, que apenas nos distância, que forma classes dentro do partido, que reproduz as relações de género e aliena a lógica de espaço contra-hegemónico que deveria ser o Bloco.

O insucesso da actividade parlamentar do Bloco está pois, na minha opinião, ligado não só aos saltos evolutivos do movimento, mas à visão paternalista de partido. Consequentemente torna-se impossível criar uma massa critica activa, capaz de validar e reforçar a actividade parlamentar do Bloco de Esquerda e atribuir-lhe o carácter de grupo de pressão.

A minha crítica de modo algum implica a condenação das correntes de pensamento do Bloco, muito pelo contrário, ela pretende é ir no sentido de alertar que elas não são donos, nem senhores, nem maridos. E que não importa quem eles são, mas o que eles dizem, com lealdade, clareza, objectivos e perspectivas, tal como qualquer outro ou outra camarada.

II Parte - “Eu não nasci mulher”, ora boicota lá isto!

Superar as opressões não depende de revoluções ou de tentativas de sensibilização do opressor. Não basta instalar o socialismo, distribuir a riqueza e libertar a classe operária contemporânea.

Se isso por si só bastasse, incorríamos no risco de deturpar o reconhecimento de todas e todos enquanto sujeitos políticos capazes de protagonizar a própria história. A liberdade e a igualdade não são concessões, as conquistas não vem por decretos, muito menos por favor. A emancipação de um sector oprimido vem somente pela mão desse sector11, e esta passa pela luta política organizada, pela criação de uma identidade colectiva capaz de reforçar o que há de comum, verificando colectivamente os passos a cumprir rumo ao objectivo que colocamos.

Hoje vivemos numa sociedade que prima por valores como a competição e o consumo, cada qual individualmente procura o seu próprio espaço. Essa perspectiva individualista reafirma muitas das vezes - nem sempre de forma consciente - todas as formas de discriminação e controlo social. As relações de género são relações de poder, e as relações de poder são quotidianas, orientadoras de relações sociais que colocam as mulheres em situação de subjugação. Mas não é só no quotidiano externo ao Movimento que elas existem. Internamente, na esfera da política do Movimento verificamos a predominância de homens e cada vez menos a participação das mulheres. Dentro do Movimento, muitos companheiros inibem a intervenção das companheiras, inclusive quando se discute género. É por isso necessário garantir que as companheiras são estimuladas a serem agentes da história, é preciso garantir que elas encontram dentro do Movimento referências para a luta Feminista. Para tal, necessitamos de espaços de construção de uma identidade colectiva, que organize um luta comum, com consequências no plano da política e não no plano dos elementos particulares.

O feminismo não é uma causa. Simone de Beauvoir disse: “Não nascemos mulheres, tornamos-nos mulheres”, afinal, apenas uma mulher pode dizer o que é ser mulher, pois crescemos com base numa norma pré-definida; e é partir daí, da análise dessa norma, que se pode identificar a nossa luta. Na minha opinião o caminho não é convencer os homens a deixar de oprimir as mulheres, não é discutir sobre o género meramente para corrigir atitudes ou transformar comportamentos particulares. As feministas do Movimento compreendem a sociedade como algo mais complexo, e entendemos o Movimento como o caminho para interferir na vida das mulheres e na opressão quotidiana através de acções políticas. Queremos viver livres de todas as formas de subjugação. Não queremos mudar comportamentos particulares, queremos transformar a sociedade.

E por isso queremos espaços auto-organizados. Espaços de conforto, que rompam com as relações de poder, onde possamos debater e planear, com base nas nossas experiências, a nossa intervenção no Movimento e consequentemente na transformação da sociedade. As relações de género são sim relações de poder, e nós não queremos inverter a seta da opressão. Queremos sim, procurar uma sociedade igualitária. E para essa procura, os espaços de cada uma e cada um devem ser respeitados. “Quem transforma a história são sujeitos políticos colectivos, que sabem quem são, por que lutam e onde querem chegar”22.

Quem acreditar o contrário tem um polícia dentro de si. E quem se predispõem a boicotar esses espaços é o primeiro agente de submissão das ideias e do fechamento da discussão democrática.

É por isso preciso lembrar, que o boicote é uma estratégia amplamente utilizada por movimentos como forma de protesto contra organizações ou políticas consideradas injustas. Para além do seu objectivo de sensibilização para determinada causa ou acontecimento ele pode também estar associado a reivindicações concretas, nomeadamente, reformas nas leis ou regimes. O boicote é muitas vezes utilizado contra empresas ou sectores económicos com o objectivo de parar, ou diminuir, o consumo dos produtos dessas empresas, levando a uma perda de lucros na expectativa que essa acção obrigue as suas direcções a reverem as suas políticas empresariais. Pelo mesmo lado, o boicote económico a determinados países pretende obrigar que um determinado país reveja as suas políticas quer internas, quer externas. Assim, podemos dizer que o boicote é uma forma de protesto não violenta com o objectivo de abrir a discussão em torno de uma situação injusta e procurar formas colectivas de a resolver.

No entanto o boicote nem sempre tem este carácter de procura de justiça social. Muitas das vezes a estratégia do boicote é utilizada, numa perspectiva neoliberal, contra o debate ou como forma de imposição de uma ideia. Na prática, quando aplicado em espaços democráticos ele é o primeiro agente de submissão das ideias e do fechamento da discussão democrática. Apesar de ser uma forma legal e de pleno direito de uso por parte de quem o prática, o boicote deve ser pensado como forma de protesto quando não são encontradas formas de diálogo ou espaços de discussão com os boicotados, sempre na lógica de abrir a discussão e não de a fechar.

Dentro de grupos sociais oprimidos o boicote por divergência de estratégia resulta numa repetição da opressão e na perpetuação da perspectiva neoliberal do individualismo. Numa esquerda que procura um conceito amplo de justiça social é por vezes necessário haver lugares para tratar a opressão, de uma forma injusta, porque as pessoas oprimidas sofrem de inibição da sua aptidão para desenvolverem e exercitarem as suas capacidades e expressarem as suas necessidades, pensamentos e sentimentos, perante o agente da opressão.3 É por isso que a existência de espaços exclusivos de grupos sociais oprimidos são tão importantes. Subverter esta lógica é asfixiar a discussão democrática do grupo e a sua capacidade transformadora. É remeter os oprimidos à lógica individualista, destruindo o colectivo e a sua capacidade de abertura à sociedade. Nem todos os grupos sociais oprimidos conhecem as mesmas faces da opressão, mas a presença de qualquer uma destas faces é suficiente para falarmos em opressão e consequentemente em injustiça social.33

A todas e a todos que acham que as experiências colectivas são boicotáveis eu digo: Utilizar uma ferramenta de protesto como o boicote, que tem para a esquerda um carácter transformador e de abertura da democracia, de forma dogmática tal como faz o neoliberalismo que combatemos todos os dias, é destruir a capacidade de transformação dos grupos socais oprimidos limitando a sua liberdade de expressão, de afirmação e consequentemente a sua capacidade transformadora.

Bela Irina Castro


1 Paulo Freire

2 Alessandra Terribili

3 Iris Young

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