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Universidade pouco Universal

Impor orientações sobre a forma como a comunidade académica se deve vestir em nada dignifica a instituição “Universidade”, pelo contrário, é uma machadada no espírito do saber, que se quer universal, libertador e imune ao preconceito.

A Reitoria da Universidade Católica Portuguesa deu orientações expressas sobre a forma como alunos, professores e funcionários se devem apresentar, a saber, “com formas de vestuário dignas e convenientes, adequadas ao local de trabalho próprio de uma Universidade e de uma instituição da Igreja” (notícia aqui). O Reitor e o Conselho Académico ficaram incomodados com o uso de chinelos, calções e camisolas do Benfica no espaço universitário – preferiram não explicitar se umas calças de ganga gastas ou uma saia mais curta lhes levantam igual repulsa e se são ou não dignas da Universidade. O Reitor apenas se desculpa com a guerra preventiva: “A preocupação do Conselho Académico foi evitar que as pessoas comecem a andar vestidas de uma maneira diferente daquela que se costumam vestir”.

A Universidade quer-se à partida um espaço de conhecimento, de crítica, de reflexão, de desconstrução da aparência, de profundidade contra a superficialidade, de universalidade contra as vistas curtas. Ao longo da história, grandes pensadores, grandes génios, muitos dos que “dignificaram” a Universidade ou ainda antes a Academia(1), não precisaram de vestimentas pomposas e até primavam pelo estilo informal ou desprezavam tudo o que era acessório.

Nem o conhecimento precisa de regras de vestuário nem as peças de roupa transmitem conhecimento fiável. O conhecimento liberta, procura aprofunda. e a partir do vestuário só se é capaz de induzir conhecimento aparente, superficial, formatado. Um estudante de calções pode ser muito mais estudioso, trabalhador, interessado, empenhado, do que um estudante de gravata que utiliza a universidade apenas como status social e com pouca vontade de aprender. Uma estudante de chinelos pode bem adorar a instituição enquanto a colega vestida a rigor zomba de professores e doutores. Quem respeita mais a Universidade? Responder a esta questão pela cor da camisola ou o comprimento do tecido é no mínimo precipitado.

Mas a posição da direcção da Universidade Católica não surpreende de todo, e não é porque se trata de uma instituição católica, cuja rigidez moral suporia sempre códigos estritos(2).

É que a universidade (em geral, não apenas a Católica) sempre foi uma instituição elitista. Foram sendo poucos os que a ela acederam. A vaidade e a cobiça da distinção sempre se sobrepuseram à humildade do filósofo Sócrates que dizia algo como: “ao menos sei que nada sei enquanto outros que pensam que sabem tudo não sabem absolutamente nada”.

Graus académicos uns atrás dos outros, provas pomposas, rituais de iniciação e de conclusão (vejam-se as praxes ou as queimas das fitas), trajes engalanados, uma verdadeira marca de distinção social entre os que estão de fora, os que não têm acesso ao saber, e os que orgulhosamente o possuem. Toda esta parafernália é contraditória com o espírito do saber libertador e por isso mesmo essa tensão produz diferenças, provoca evoluções. As praxes universitárias não existem numa grande parte dos países. E, como bem refere o esquerda.net, em Harvard o estilo informal é aceite entre alunos e professores e no MIT o “dress code” foi banido em meados do século passado(3).

As tendências elitizantes do espaço universitário não são uma novidade. A novidade da Católica é a forma ostentatória como o faz. Pior ainda, é a forma persecutória, bem patente no último ponto do seu comunicado: “todos são responsáveis pela salvaguarda do ambiente e da imagem da Universidade nas suas instalações e no espaço do Campus universitário, devendo chamar a atenção dos que se apresentarem de maneira imprópria”. Este incentivo a uma espécie de caça às bruxas, fazendo do vizinho o teu denunciante e de ti o denunciante do teu vizinho, mostra como estão vivos os carimbos da inquisição avivada pelo fascismo e que já se julgavam mortos pela democracia.

Todo o ser humano, para além de um ser racional, funciona na base das aparências e em cadeias de estímulos e respostas, por condicionamento clássico. É também por aqui que o racismo tem terreno fértil: a diferença na aparência parece ser sempre uma boa razão para justificar uma atitude, porque é a razão mais visível ao olhar…se essa diferença não existe de forma nítida é muito mais difícil estereotipar (quando são africanos ou ciganos frequentemente os media sublinham esse facto, mas nunca os ouvirão dizer: “homem branco português assalta banco”).

Se vejo alguém de calções e chinelos na universidade, poderei imediatamente pensar por condicionamento que essa pessoa age como se a universidade fosse a praia, dado que estou habituado a ver essas vestimentas na praia, e por isso algo não bate certo. Mas, pensando mais um pouco (só mesmo mais um bocadinho), compreendo que pode ser uma opção de conforto ou estética (uma questão de liberdade) sem intenção de desrespeitar ninguém e sem o fazer de facto. Desafiar o condicionamento do ser humano com um pouco de liberdade e racionalidade faz falta a muitas direcções universitárias que, até ver, são indignas daquilo que dirigem.

Concluo com uma recordação de há cerca de 16 anos. O Conselho Directivo da escola secundária que frequentava (Liceu Rainha Dona Leonor) emitiu uma Ordem de Serviço proibindo alunos e alunas de usarem decotes demasiado pronunciados, as mini-saias e as calças rasgadas. No dia seguinte, muitos de nós, desafiando directamente a ordem superior, aparecemos na escola das mais variadas formas: rapazes de mini-saia e pintados, raparigas de laço e gravata, rapazes e raparigas pela primeira vez decotados ou rasgados. Ridicularizado, o Conselho Directivo não mais se importunou. Foi remédio santo. Haverá algum para a Católica?


Notas:

(1) O termo Universidade é mais recente (surge com as primeiras Universidades na Europa medieval do séc.XII) doq eu o termo Academia (Platão, séc. IV ac)

(2) E também não é por isso que não deixa de ser uma instituição capaz de acrescentar conhecimento à sociedade nas mais diversas áreas do saber.

(3) Mesmo em Portugal há diferenças assinaláveis. Recordo-me de frequentar a Faculdade de Letras (onde o poder não tentava inibir a informalidade) e comentar-se que ali mesmo em frente, na Faculdade de Direito, nenhum aluno se podia atrever a comparecer numa prova oral sem fato e gravata.

Sobre o/a autor(a)

Professor.
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