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“A vida é feita de pequenos nadas”

Esta semana estou em Milão a trabalhar numa prisão, a convite de uma associação amiga que faz intervenção através da música e do teatro.

San Vittore é uma das três prisões de Milão, a mais antiga, fundada em 1872. Tem uma enorme rotação ao ano porque ali estão detidas sobretudo pessoas que esperam julgamento. Ou seja, trata-se de uma prisão onde está muita gente com o estatuto de “inocente até prova em contrário”. É um edifício velho e degradado, com anexos e pequenos pátios em várias alas, com anúncios de missas e crucifixos abundantes. Em San Vittore há lugar para 600 detidos. Neste momento, estão ali presas 1700 pessoas. Ou seja, três vezes mais do que aquilo para que o espaço está preparado.

O problema de San Vittore é comum ao de outras prisões italianas. Este país tem visto crescer exponencialmente a população prisional, que vive em condições cada vez piores. A razão não é difícil de adivinhar e foi enunciada por um dos responsáveis da prisão. As leis repressivas da direita transformaram o sistema penal na resposta à questão social. Uma lei de imigração xenófoba faz com que milhares de imigrantes, pelo simples facto de serem clandestinos, sejam encarcerados, ainda que não tenham roubado, batido ou ofendido ninguém. Esta é uma parte fundamental das pessoas que conheci em San Vittore (do Egipto, Tunísia, Etiópia, Albânia, Chile...). Outro exemplo é a lei da droga: muitas pessoas aguardam nesta prisão o seu julgamento por terem sido apanhadas com cannabis ou com outras drogas. Como se imagina, muitas delas são jovens e é com eles que estaremos amanhã.

Último exemplo, mais contraditório. A prisão tem uma ala que é, basicamente, um hospital psiquiátrico e tem muitos detidos com doenças mentais. Algumas destas provavelmente podem ser resultado ou foram agravadas pela vida no universo concentracionário da prisão. Mas há doentes mentais que já o eram quando cometeram crimes. Pergunta imediata: então se já tinham algum problema não terá falhado o acompanhamento a que teriam direito? Acontece que a Itália iniciou há décadas um movimento pioneiro para a desinstitucionalização das pessoas com este tipo de doenças, acabando com os hospitais psiquiátricos. O precursor deste processo foi Franco Basaglia, um psiquiatra revolucionário que iniciou na década de 1960 experiências exemplares de relação com estes doentes em Gorizia e depois em Trieste e fez aprovar, em 1978, uma lei com o objectivo de substituir os hospitais psiquiátricos por redes de cuidados e pequenas comunidades terapêuticas abertas e pela inserção laboral, social e artística dos pacientes. Só que esta boa lei foi depois combinada com a má prática liberal de destruir os serviços públicos e diminuir a responsabilidade e recursos do Estado no acompanhamento destas pessoas. Resultado: o encarceramento de muitos destes doentes deixados a si mesmos. Foi com estas pessoas que passámos a tarde de hoje.

Hoje fizemos jogos simples, dos que usamos normalmente no teatro do oprimido e outros tantos de ritmo e música. Ocupámos o pátio, estivemos à conversa, divertimo-nos. Algumas das pessoas com quem estamos fazem sessões de música todas as semanas. E agora, com gente nova e outras formas de expressão, passámos um bom momento. Explicava o Tonino, no fim, que o que nos rimos juntos o fez “sair daqui da prisão por um pedaço”. E o Alfredo, um senhor com a idade do meu pai, que está em permanente reflexão consigo próprio – mas que faz questão de a dizer sempre em voz alta – dizia que foram “umas horas felizes”. “Fez-me lembrar as brincadeiras de criança”, apontou-nos outro. Não sei exactamente o que poderá ter sido. Espero que isto seja útil a quem vai continuar por aqui – nomeadamente os amigos da associação que organizam o projecto e as sessões de música na prisão e talvez passem a utilizar o teatro do oprimido. Sei que nada disto que fizemos juntos mudou a condição estrutural destas pessoas nem tão pouco acaba com este movimento de substituição do estado social pelo estado penal, que é a natureza repressiva e autoritária da política neoliberal que governa a Europa. Mas uma coisa não tira a outra. Hoje rimo-nos, divertimo-nos e eu aprendi. Soube bem. Pode ser que alguma porta se tenha entreaberto. E se não mudou mais nada, ao menos mudou o nosso dia.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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