You are here

Pela porta entra a maré

Contributo de Alice Brito

Maravilha, maravilha, venham ver o barco doido

Sem amarras que o segurem pela porta entra a maré

José Afonso

 

Chegar a casa. Chegar a casa significa estar à vontade, falar sem travões, pensar sem entraves, conhecer a intensidade de uma opinião que se verbaliza sem a censura da autoridade. A pior autoridade é aquela que se toma como natural e nos despe da legitimidade da nossa própria visão das coisas.

Os afectos não podem diminuir-nos a voz. Não podem transformá-la num murmúrio.

Não pode haver um cheiro, um bafo de hostilidade, de cada vez que se opina contra o vento dominante. No fundo, muitas vezes, esse bafo é só pânico, é só o medo de ser posto em causa, o que reflecte que, mesmo involuntariamente, o poder directivo se vai fossilizando.

O bloco hoje continua a viver tripartido. As fissuras que vão existindo são habilmente tratadas com gesso. À custa de se querer um permanente equilíbrio, perdeu-se a harmonia. Precisamente porque esse equilíbrio é feito à custa de uma blindagem das forças que compõem os órgãos. Seca tudo em volta por falta de respiração. Ninguém sobrevive engessado a vida toda. Ou então, se sobrevive, tem uma existência dolorosa, tolhida de movimentos, paralisada, ou a andar apenas à custa de uma máquina cada vez mais impessoal. As máquinas, os aparelhos, ajudam as pessoas. São ajudantes que nos levam onde queremos ir. São um meio, não são um fim. As máquinas utilizam-se e renovam-se. Não se perpetuam.

Debater ideias e estratégias, pensar e repensar o futuro só pode ser tarefa colectiva.

Mas debater não é mudar. É preciso que o resultado do debate não seja uma espécie de primeiros socorros. Não seja um penso rápido, uma compressa que se põe para evitar uma sangria. Não necessitamos de um debate aspirina. Esse debate descomprimiria, tiraria de imediato a dor de cabeça, mas nada curaria. Precisamos de mudar de vida.

 

O bloco não pode ser o somatório do esqueleto de três partidos.

 

Se assim for, não passará de um espaço macilento, magro e pouco frequentado.

Não deve nem pode entregar-se à arte da censura, ao arabesco sentencioso do julgamento de carácter, à insinuação pequena da finalidade de quem discorda ou à explicação tendenciosa e desleal da divergência.

A língua deve fluir. A linguagem que expressa a opinião deve ter asas. Não pode transformar-se numa sublinguagem própria das tribos, num dialecto que é propriedade de alguns.

O debate pode ser quente. A ponderação e a análise que dele se tirarem devem ser frias e actuantes.

Várias gerações, perspectivas e práticas de vida nos separam. O olhar também muitas vezes nos demarca. E a família, o sangue que nos corre nas veias do nosso posicionamento político, pode também, como tem feito até aqui, ser um entrave ao nosso acordo. Mas muito para além disso, quando se fundou o bloco houve um sentimento que nos uniu a todos. E a todas. Esse sentimento era a crença sentida de que era possível não desistir. Era possível uma não rendição. O apelo à agregação dessa totalidade que nós éramos, ou pensávamos ser, contra tudo o que não se conseguia suportar, foi forte e foi bonito. Essa convocatória mobilizadora que falava da necessidade de juntar forças para mudar o mundo, o país, a vida, era um apelo poderoso que parecia conter a fórmula mágica do combate à desesperança. Foi um apelo para todos e todas. Para a minoria que estava dentro dos pequenos partidos e para a maioria a quem pesava não ter partido algum.

Foi essa maioria ruidosa e contente que deu ao bloco os instrumentos de crescimento.

Foi com essa maioria que o bloco teve nas penúltimas eleições mais de meio milhão de votos.

Essa maioria mandatou o bloco para a representar. O bloco passou a ser seu procurador para as lutas todas.

Contudo, o bloco elegeu como luta principal a luta no parlamento, que não sendo, obviamente, negligenciável, não pode ser exclusiva. Sobretudo, não pode sobrepor-se a todos os outros combates. Neste quadro, “as lutas todas” passaram para segundo plano. E assim sendo, o bloco foi perdendo o feed-back sucessivo, o sinal que lhe era enviado e que continha o som do descontentamento que já se mesclava com a distância. Procurador do nosso querer não conseguiu implicar-nos no mandato que lhe tínhamos passado. Mais, pôs-nos à margem das decisões tomadas.

A democracia não pode ser uma palavrinha sem conteúdo. Tem de ser uma palavra que se põe em prática e essa prática tem de ser interiorizada como aquelas acções que pela sua repetição se tornam naturais. É preciso usar a democracia como se usa uma regra gramatical. Quando infringimos essas leis da linguagem o que queremos dizer fica distorcido. A prática partidária também é assim. Quando se procede sem respeitar a regra democrática, a prática política fica distorcida, sem sentido e incompreendida.

A democracia não é um manequim que se vai vestindo de roupa a horas certas conforme a estação e a moda. É conceito e é prática. É pensamento mas é também organismo pluricelular, vivo, opinativo e, finalmente, decisório. É planta paciente que nos vai dando o chão que atapeta de raízes. A democracia é difícil. Mas às dificuldades estamos nós habituados e habituadas. Se gostássemos de facilidades ficávamos em casa a ver televisão.

A democracia é um código. E só nesse código nos devemos entender. A democracia pressupõe representação. Mas não pressupõe alienação. Não pressupõe que deixemos de decidir. Pressupõe ouvir e ser ouvido.

Abrir um caminho. É preciso abrir um caminho. Enquanto conseguimos afirmar as nossas diferenças fomos capazes de crescer.

Uma das nossas maleitas é o “temor reverencial”. Desde sempre nos declarámos diferentes do PC. Temos outra substância, outra visão, outros métodos e anseios.

Contudo, no desnorte da caminhada, muitas vezes é o PC que nos serve de estrela polar. Há, contudo, muitas formas de encontrar o Norte. E o nosso Norte não é o Norte do PC.

Também não é o do PS, com quem tivemos até agora uma relação de amor-ódio. E, portanto, cega.

Autonomia. Autonomia de caminho. Autonomia não significa nem solidão, nem fechamento. Autonomia significa abertura para que outros e outras nos acompanhem na caminhada, que se quer feita em conjunto, com um programa próprio, que respire por si.

O que não significa é sujeição, subordinação, vassalagem, em nome de uma suposta unidade. A unidade faz-se na luta concreta, na acção necessária. A unidade faz-se na confluência do que se considera justo, e na presença rebelde contra a iniquidade, arbitrariedade ou injustiça. A unidade faz-se na presença no movimento social, sem querer engolir a consciência cívica de quem aí se movimenta. A unidade faz-se onde vivemos, onde existimos, e onde se decide da nossa vida.

Essa é a unidade a que o bloco, com um pensamento próprio e próximo, deve aspirar.

Desde sempre temos desbaratado um preciosíssimo capital de política próxima.

Falamos com grande à vontade da política nacional; temos grande consistência na análise da política internacional e global; descuramos completamente a política local, desde aquela que tem a ver as autarquias, até àquela que tem a ver com os espaços em que as pessoas inscrevem a sua vida.

Construímos, pois, uma casa sem alicerces. Somos uma espécie de míopes ao contrário. Só olhamos à distância e não descodificamos o que está perto.

 

Encontrar um caminho.

O bloco é intergeracional. As gerações não se rejeitam. Isso é o que faz o mercado. As gerações complementam-se e nessa complementaridade se encontram.

Renovar é dar a voz a outras vozes. Novas vozes.

Renovar é dar lugar a outros protagonismos.

Os outros protagonismos devem ser, porém, autênticos, isto é, não podem nem devem ser caixas de ressonância de outras vozes que por detrás deles se ocultem, continuando a ditar o mesmo discurso.

Dificilmente o bloco aguentaria a carência da intervenção pública de alguns dos seus mais notáveis representantes. Mas estes não podem secar a emergência de outros e outras representantes. Sobretudo de outros e outras que não alinhem com a lógica do recrutamento paralelo, isto é, que não se prestem a servir a estratégia de hegemonia de uma qualquer das três tendências fundadoras.

Abrir a porta e todas as janelas.

É o que se faz quando o ar está saturado.

Pela porta entra a maré.

Termos relacionados Debates 2011
Comentários (2)