Amanhã começou o 15-M

O nexo de união entre a praça do Sol e Tahrir é a dignidade de uma juventude que quer ter futuro e que actua também em nosso nome, incluindo os que no activo têm mais passado do que futuro. Por Manuel Gari

11 de June 2011 - 0:14
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A irrupção em plena campanha para as eleições municipais e autonómicas de um amplo movimento que reivindica o óbvio nas praças, teve um primeiro efeito: mexeu com os parâmetros do “debate” político convencional eleitoral no nosso país. E, mais importante, rompeu com o malefício do ciclo de desmobilização social para o qual parecíamos atirados sem remédio.

O que começou como uma entediante primeira volta das eleições gerais tornou-se num fórum vivo de, pelo menos, uma parte do povo da esquerda que fez do espaço público um bastião face ao atropelo. As eleições (recordemos: locais!) supuseram uma janela de oportunidade para que, o que se vinha anunciando em pequenas actividades e em muitas conversas, se manifestasse em massa. E ninguém limitou nem a análise nem as propostas ao âmbito municipal, todos os temas, desde os locais aos globais, se puseram sobre a mesa.

Questão de dignidade

O mal-estar transformou-se em indignação. A indignação pôs-se em marcha sob a forma de acção política colectiva no passado 15 de maio. Já tinha precedentes próximos, como as mobilizações da Juventude sem Futuro (sem casa, sem trabalho, sem pensão, mas também sem medo). Mas esses precedentes tinham sido ignorados por analistas e decisores. E, o que ainda não conseguiram entender os dirigentes políticos institucionais nem os seus intelectuais orgânicos, é que a força motriz da mobilização não é tanto uma fiada de reivindicações prévias como a necessidade e o objectivo de recuperar a dignidade.

Porque se trata de dignidade. E esse é o nexo de união entre a praça do Sol e Tahrir: a dignidade de uma juventude que quer ter futuro e que actua também em nosso nome, incluindo os que no activo têm mais passado do que futuro. O outro nexo de união é a interacção que as redes sociais permitiram ao serviço da acção Até aqui as similitudes. A partir daí as diferenças. O contexto político e social é diferente. Lá havia que bater ditaduras, aqui tirar a política do lodaçal. Lá os problemas sociais superam em gravidade e intensidade os muito reais e graves existentes aqui. Mas ambas lutas, de ambos os lados do Mediterrâneo, com as suas diferenças e similitudes fazem parte de um mesmo movimento emancipatório que abre novas esperanças.

Um amplo sector da sociedade sente-se mal tratado e defraudado. Foi testemunha muda do debate político sectário partidário, da corrupção sem limites, da actuação de um poder judicial pelo qual o fim do franquismo não passou ainda, de um PP que anuncia, a partir dum discurso vazio, uma nova era para Espanha, se governasse, e de um PSOE que perdeu a credibilidade e a honra ao aplicar as políticas de ajustamento que lhe ditavam os mercados, ou seja, o capital. A sociedade foi expropriada e, em particular a juventude, que maioritariamente nem sequer pode perder direitos sociais porque não chegou a aceder aos mesmos e a quem cinicamente se oferece como saída que passe a fazer parte dos “empreendedores” ou, o que é o mesmo, põe-se às costas da vítima do desemprego o fardo da solução.

O significado da revolta

O 15M colocou duas questões centrais: Quem deve pagar a crise? Quem e como se devem adoptar as decisões colectivas numa sociedade democrática? Questões que resumem o conteúdo social e político da qualificada, de forma ingénua e exagerada, spanish revolution.

O movimento Democracia Real Já (DRY) põe em questão as políticas de ajuste neoliberais e propõe-se procurar alternativas. E como condição para isso coloca a necessidade da sociedade dispor de ferramentas democráticas para decidir o seu futuro. Perguntas que o levam, ao procurar soluções face à crise, a aproximar-se na prática de propostas anticapitalistas. Perguntas também que o levam a questionar não a democracia, mas as formas desta democracia sem participação activa da cidadania e com altas doses de corrupção institucionalizada.

Em definitivo o 15M situa a questão da qualidade da democracia e a necessidade de uma volta na política económica e social no centro do debate político. O perfil do DRY é o de um movimento social autónomo no que toca a partidos e sindicatos, de composição fundamentalmente juvenil –embora haja que destacar a incorporação crescente de outras gerações militantes - diverso e plural, ao mesmo tempo que unitário, em que coexistem múltiplas identidades e participam novos activistas sem trajectória organizativa prévia conjuntamente com gente do movimento ecologista, feminista e estudantil ou de componentes dos centros sociais ou das novas expressões da esquerda à esquerda. E, além disso, sindicalistas “a título individual” e uma infinidade de pessoas com alguma causa pendente vão às concentrações. O estar farto e a identificação do inimigo comum aglutinam o conjunto.

Resultam, por isso, extravagantes e mal intencionadas perguntas como quem está por trás do movimento, próprias de uma concepção da política em que os povos e as gentes não têm capacidade de se emancipar e ficam reduzidos à condição de meros acompanhantes de uma organização ou outra. Em vez de se perguntarem quem está no meio, tomam como pressuposto a existência duma mão invisível – geralmente antissistema - que maneja as marionetas. Pudemos ler e escutar exemplos delirantes de “conspiranóia” procedentes tanto da direita e seus grupos mediáticos como de reconhecidas plumas do primeiro grupo espanhol de comunicação de centro-direita que, inicialmente, se situaram agressivamente contra o movimento porque rompia com a sua ideia sobre procedimentos e modos com que a participação na vida democrática se deve desenvolver.

É preciso fazer uma menção especial ao alheamento existente no DRY em relação aos sindicatos, a todos certamente. Alguns dos seus componentes atiram à cara das organizações sindicais maioritárias que não tenham cumprido, que tenham cedido em questões como as pensões. Bem fazem os principais dirigentes sindicais reconhecendo que há motivos para a indignação. Mal fariam quem dos sindicatos reduzisse as relações com o DRY ao conflito com os “antissindicais”. As organizações sindicais têm um repto à sua frente: estabelecer pontes com uma geração de futuros trabalhadores e trabalhadoras que configurarão a classe trabalhadora de manhã e com quem não existem hoje cumplicidades.

Novas revoltas, novas formas

O movimento, apoiando-se nas redes sociais, rapidamente se estendeu geograficamente, cresceu numericamente, organizou – com um impressionante grau de eficiência - começou a realizar propostas políticas (que estúpidas soam hoje as palavras de alguns ilustres académicos e tertulianos que desde o primeiro dia, na tentativa de o estigmatizar, pontificaram que o movimento não tinha alternativas!), mostrou imaginação nas formas de acção, audácia nas propostas face ao establishment, autocontenção face a provocadores e fascistas, disciplina na reacção face à repressão policial, serenidade ante as tentativas de criminalização da direita, e, muito especialmente, vontade e decisão face às diferentes tentativas de o dissolver a partir dos gabinetes da Junta Eleitoral.

O seu primeiro grande ganho é ter conseguido tecer a sua permanência dia a dia, noite a noite, resistindo em praças onde se ensaiou com sucesso a “outra cidade”, a da fraternidade e da cooperação. Como metáfora mesma da dificuldade que enfrenta a mudança para as mulheres a nível macro, esteve presente no micro na expressão grosseira do machismo de algum acampado que as feministas souberam pôr no seu lugar. O grito de “Não saímos” foi a expressão rotunda e gráfica da vontade de resistência e de uma estratégia elementar que se mostrou acertada e eficaz nestes primeiros passos. O movimento ganhou legitimidade face à sociedade porque soube dar o primeiro passo depois de se indignar: actuar A sua singela e elementar mensagem deixou entredito e colocou em evidência a muito escassa legitimidade dos principais atroes e instituições do sistema político. Mas não ganhou credibilidade só por isso, obteve-a porque quem se mobilizou representa e exprime a percepção política e o estado de ânimo de um amplíssimo sector face às instituições.

As ideias força do 15M

A palavra-de-ordem “Não, não, não nos representam!” põe em primeiro plano o divórcio existente entre a juventude (e também dum amplo sector social) e as elites políticas institucionais, a famosa “classe política” (que termo mais perturbador!). Os “políticos” – profissionalizados em instituições e partidos - aparecem ante os seus olhos não como quem soluciona por delegação os problemas colectivos mas como agentes ao serviço da banca e dos empresários. Portanto, são percebidos como parte do problema. A palavra-de-ordem “Não votes neles” tem destinatários concretos: os partidos que contam na hora das decisões: PSOE e PP. Mas a crítica à política institucional abarca todos os partidos do sistema. E, no entanto, não é sequer maioritária a posição antivoto ou abstencionista clássica do anarquismo. Simplesmente não querem votar “nesses”.

Quando milhares de pessoas entoam em coro “Chamam-lhe democracia e não o é” estão a dar relevo à existência de ateromas nas vias de participação democrática num país em que os procedimentos se reduzem a exercer o voto periodicamente. Um país onde os conselhos de participação cidadã são em muitos casos fingimentos que não chegam nem ao nível consultivo, a Iniciativa Legislativa Popular é um corrida de obstáculos com nulos resultados, o direito de referendo tem uma regulamentação que o torna inviável e modestas experiências como os orçamentos participativos são uma excreção Se os procedimentos de participação têm ateromas, estes ainda são maiores no seio dos partidos maioritários. Como resultado temos um modelo esclerosado que exige mudanças desde a raiz.

A qualidade democrática

As concentrações não estão a por em questão as liberdades e a democracia mas sim a falsificação da mesma. O “atado e bem atado”i do sistema político fruto do consenso imposto sob ameaça nada exemplar nem modelar – pese embora a historiografia e hagiografia oficial – a transição espanhola tem a sua tradução jurídica na Constituição vigente que aparece como um texto sagrado ou tabu intocável. Das que puderam votar a Constituição de 1978, continuam vivas 8 822 278 pessoas, ou seja, 20,71% da população espanhola actual e dado que a participação ascendeu ao 67,11% - fosse qual fosse a sua papeleta- somente votaram 5 920 630.

Isso significa que a grande maioria da população espanhola actual não decidiu sobre questões tão importantes como o modelo de estado, o sistema económico, a forma de governo ou a monarquia. A juventude actual não se identifica com um texto com apontadas carências democráticas que não decidiu e que ninguém lhe permite poder referendar ou mudar. É hora de abordar o problema criado há 35 anos pela política do consenso constitucional imposto e pela falta de memória. Acabar com as heranças, hipotecas e sobrevivências do franquismo supõe consumar a ruptura democrática inconcluída. Isso supõe mais democracia e mais liberdades.

O futuro do movimento

Um bom número de intelectuais tentou, com pouca sorte, caracterizar o movimento para augurar o seu futuro. O qualificativo precedeu o substantivo. Antes de nascer a criatura já tinha registado o nome e a partida por morte. Como amostra bastam alguns exemplos.

Vejam como Etxezarreta associou o movimento com uma “birra passageira” necessitada, para sobreviver, de se aliar com entidades com mais entidade; obviando à existência de importantes organizações sociais que o apoiam e esquecendo o movimento de fundo que motiva o 15M, além da debilidade das formas organizativas do DRY, Fernando Vallespín chamou-lhe populista – com risco de emparelhar com o populismo de direita - porque atacava genericamente os bancos e os governos; ignorando que esses a quem assinala são os que toda a vida foram “os que estão em cima” para os movimentos sociais de esquerda. Pablo Oñate augura o seu fracasso porque “carece de propostas articuladas”, ignorando as que qualquer um pode consultar em www.democraciarealya.es. Como é possível que não se tenha dado ao trabalho de conhecer o que criticava? Ou muito me engano ou o movimento social pouca ajuda vai receber da maior parte da academia e da intelectualidade homologada.

Hoje à hora de escrever o texto não se conhece ainda o resultado eleitoral e portanto o quadro institucional resultante. Certamente não será indiferente a correlação de forças que se estabeleça entre as diferentes forças depois das eleições. Mas isso pouco tem a ver com os debates nas assembleias nas praças e não partilho da preocupação expressa por José Luis Zárraga quando indica ao movimento a necessidade de votar. Essa não é a questão tal como se pôde comprovar nas assembleias para além de intervenções episódicas. A questão em debate não era votar ou não no dia 22. A questão é que democracia e que política.

Aventuro que o movimento em torno do DRY não vai ter efeitos eleitorais neste curto prazo de tempo, pois cada força política – a começar pelo PSOE – foi ganhando a pulso a sua situação e o resultado do partido, empregando a linguagem desportiva, dependia apenas do seu próprio jogo. E, por sua vez, os reptos do futuro que o 22 M tem ante si, depois do DRY, são de tal natureza que dependem em muito pequena medida do novo quadro nas Câmaras e Comunidades.

A 23 começará uma nova etapa do movimento surgido a 15M num quadro em que em todas as autonomias e câmaras vai recrudescer a política de ajustamento duro antissocial e em que as políticas governamentais vão estar determinadas pelas novas exigências regressivas do Pacto pelo Euro.

O futuro do DRY dependerá da sua capacidade para oferecer respostas alternativas, estabelecer alianças sociais amplas, desenhar cenários de relação com os partidos e solucionar os novos problemas de organização que permitam um funcionamento estável, unitário e pluralista bairro a bairro e aldeia a aldeia. O resultado é incerto, mas o repto de tentar manter e fortalecer o espírito da Sol, da Trinidad, Catalunya, Ajuntament e esse grande etc. de praças, é uma aventura que vale a pena empreender.

http://www.anticapitalistas.org/node/6906

Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net

ifrase usada por Franco na hora da morte para garantir que a continuidade estava assegurada depois de si

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