You are here

Socialistas na economia e para lá dela

O pior que pode acontecer a uma esquerda socialista é não reconhecer os seus erros tácticos e estratégicos, que estão longe da sua plataforma “económica”, com todas as insuficiências que esta possa ter.

Entre os analistas corre a tese, posta a circular por Pedro Magalhães, sabe-se lá com que base, e replicada por Pedro Lomba, que muitos eleitores do Bloco, culturalmente “libertários”, tapam os ouvidos sempre que a esquerda socialista fala de “economia” sem esquecer por que é que se chama socialista (Público, 7/06/2011). Segue-se o conselho implícito, que dá jeito ao consenso liberal, de que estes dois intelectuais públicos são dos mais sofisticados difusores: se querem ser bem sucedidos eleitoralmente deixem de ter “medo do mercado”, a expressão é de Magalhães. Medo do mercado é todo um programa que nos levaria em direcção às soluções hegemónicas que podemos ler nos livros comprados nos corredores do Pingo Doce.

Quem tem medo do “mercado”? De facto, quem tem uma situação profissional estável e bem enquadrada organizacionalmente, com autonomia e rendimentos razoavelmente garantidos, poderá não ter razões para ter “medo do mercado”, que não passa aí, na mais liberal das hipóteses, de uma idealização, que esquece todas as outras instituições, como a grande empresa, que fazem o capitalismo, suas variedades e suas desigualdade. Não há aí que ter legítimos receios, a vulnerabilidade de ter pouco poder numa relação laboral assimétrica ou o acesso dificultado a bens e serviços essenciais. A questão é que, mesmo entre as profissões ditas intelectuais, as relações com algumas garantias para quem trabalha por um salário estão a perder peso na actual economia política marcada pela precariedade e pelo desemprego, marcada pela austeridade permanente.

Hoje mais do que nunca, a esquerda socialista não pode desistir de falar na economia que temos e nas propostas para a sua civilização, de ver o que se passa para lá das portas dos corredores dos Pingos Doces onde se diz “proibida a entrada a pessoas estranhas ao serviço”, de defender que a liberdade também depende dos recursos e do poder que cada um tem a partir do seu local de trabalho e da protecção que a lei lhe garante.

A esquerda só se justifica se contribuir para superar uma representação fortemente enraizada que funda a separação artificial entre a esfera política e pública – a dos direitos de cidadania – e a esfera económica supostamente “privada” e despolitizada – a das relações contratuais entre indivíduos que são autónomos por definição liberal. A esquerda lutou sempre pela superação desta ficção. Isto faz-se através da extensão da lógica dos direitos políticos democráticos à economia em geral e ao mundo do trabalho em particular. Quando a esquerda abandonar este objectivo terá perdido toda a sua razão de ser. Nas presentes circunstâncias nacionais e europeias, isto implica lutar com denodo contra a intervenção externa e contra o seu programa de limitação da democracia e do Estado social universal, um dos seus esteios. Uma luta que também se faz em nome de um programa europeísta razoável, que tem de partir de iniciativas corajosas das periferias, e que está muito mais estruturado, pensado e difundido do que há alguns anos atrás.

Dito isto, a questão mais premente é mesmo política, de organização e de poder. Aqui o pior que pode acontecer a uma esquerda socialista, que queira tirar todas as ilações deste desaire eleitoral, é não reconhecer os seus erros tácticos e estratégicos, que estão longe da sua plataforma “económica”, com todas as insuficiências que esta possa ter. A esquerda tem de adequar a sua forma organizacional para impedir que estes erros se repitam, para evitar que se amplie o fosso entre a sua base eleitoral e a sua direcção política. Um fosso que se abre sempre que muitos cidadãos pressentem uma indisponibilidade partidária para gerar soluções construtivas, para gerar esperança. Um fosso que se abre sempre que se fragiliza a participação democrática. Da moção de censura à recusa em reunir com a troika, há muita pedra para partir e muitas vozes, de perto e de longe, para escutar.

A melhor tradição socialista não cai na tentação de avançar com desculpas esfarrapadas, que soam a desresponsabilização, para descalabros eleitorais e não cataloga preconceituosamente a opinião legítima de militantes dos mais diversos quadrantes internos. Dizer-se, por exemplo, que a derrota se deveu à pressão do chamado voto útil é curto: por que é que, afinal de contas, essa pressão foi tão eficaz? Seja como for, o pluralismo é o nosso melhor activo porque também é a melhor forma de irmos descobrindo as verdades, as explicações mais plausíveis, as que sobrevivem a um debate, que por vezes estão nas vozes, tantas vezes aparentemente isoladas, que se podem revelar tão prescientes porque mais em sintonia com o pulsar de quem nos apoia.

Uma cultura democrática é a melhor forma de evitarmos fechamentos políticos, de evitarmos as armadilhas dos estereótipos que sabemos como começam e como acabam. Reflexões como a que Fernando Rosas aqui publicou dão-nos pistas profícuas, embora o debate se possa e deva fazer em todos os lados. Não há um fora e um dentro de um partido democrático. Todos somos poucos e as nossas redes vão para lá das sedes. Aos dirigentes, militantes e simpatizantes pede-se ética da responsabilidade, pede-se que não transfiram responsabilidades pelo desaire das legislativas para uma candidatura presidencial digna. Temos de querer recomeçar de novo. A única esquerda socialista que vale a pena é a que não desiste de crescer.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Economista.
Comentários (1)