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O recreio dos anjos

Já se sabe que este é um país avesso a anjos. Pelo menos ao conceito que se tem de anjos. Em princípio os anjos deviam ser bonzinhos. Não é o caso destes que insistiram na ajuda.

Dantes, num passado pulha e já esquecido, viam-se nos recreios das escolas as crianças paradas, amagadinhas na fome. Indiferentes aos barulhos ficavam a olhar, à espera de qualquer coisa.

Estes fulanos querem repetir esta tragédia.

Os dias vão-se passeando por nós, espessos e carregadinhos de medidas e debates.

Os tipos que vieram, vagabundeiam por aí, com o seu olhar mole, vazio, à pressa, deixando as tardes limpas deste Maio colorido e molhado, Maio chuvoso, embaciadas pelo nevoeiro do futuro incerto e triste que, com lábias mais ou menos científicas, supostamente económicas, nos prepararam, servindo-se do alarido de vaticínios dos grandes laboratórios da acústica sistémica.

Eleitos sem eleição, aclamados sem palmas, proclamados pela manigância dos camarins ministeriais e europeus, aí estão eles, os da troika, a planificar a ruindade. São uma desfortuna, são uma ausência de asseio, ainda que nos tentem todos os dias lavar a alma com lixívia. Só que se esquecem que a lixívia queima. Não branqueia almas e memórias. E cega. A lixívia cega. Arde nos olhos que ficam enraivecidos e inflamados, à beira de uma combustão perigosa.

Ainda que a nossa prática cidadã seja breve, sumária e mal tratada, ainda que pareçamos estar-nos completamente nas tintas para isto tudo, a lixívia arde. Na alma e nos olhos. Pode cegar.

O tempo, coitado, vai-se arrastando, agora que é frequentado por um sol ladrão que nos quer roubar energia e amortecer a gana.

Notícias picantes aparecem como fogachos nos dias que se vão entornando a um ritmo estranhamente acelerado. O apimentado de qualquer escândalo, melhor se for um escândalo sexual, é um estilhaço de animação neste tempo rapidíssimo, mas tão parado que faz nervos até a uma pedra.

E depois há aqueles instantes de perplexidade e risota proporcionados por um Catroga desinibido. Talvez mais para a banda do inimputável. Catroga já foi ministro. Agora quer ser ministro. Para preparação ministerial falou aos portugueses como se estivesse na tasca dele, ali à esquina. Ou então num banco de jardim entre colegas da batota.

Não sei bem qual a fronteira entre o vernáculo e a ordinarice. Pode ser ténue e precária. Ou não. No caso do autor do programa do PSD, um senhor de cabelos brancos, é capaz de não ser nem uma coisa nem outra. Pode ser só falta de juízo. Pode ser só uma deficiente avaliação da realidade. Ou seja, pode ser só porque o homem se passou. Assim sendo, é melhor ler com cuidado o dito programa, não vá o diabo tecê-las.

Os dedos desnorteados que o escreveram podem ter alucinações e apontar soluções semelhantes aos paleios ex ministeriais.

Já se sabe que este é um país avesso a anjos. Pelo menos ao conceito que se tem de anjos. Em princípio os anjos deviam ser bonzinhos. Não é o caso destes que insistiram na ajuda.

Os que aqui chegaram têm um ar de anjos maçónicos, seja lá isso o que for.

Não são, de certeza que não são, anjos barrocos de asas pequenas e algum sorriso a iluminar a cara redonda e gordinha.

Estes têm grandes asas negras com que varrem em conspiração tudo por onde passam. Anjos que urdem tramóias e são instruídos na grande arte medieva do sofrimento.

São hábeis, discursam com voz de seda, não se lhes adivinhando a crueza das coisas que são capazes de fazer.

Estes anjos integram a vanguarda, a guarda pretoriana do neoliberalismo.

Quando ouvem falar em estado social, começam a chispar, têm espasmos, babam-se de fúria.

Esquecem-se que o estado providência foi também providencial para eles, porque lhes serviu de bandeja uma humanidade mais limpa, mais capaz e mais saudável. Produziu produtores mais competentes, pensantes e eficazes. Produziu produtores que podiam consumir o que se punha nos mercados, porque tinham uma reforma e um hospital em que não pagavam, se estivessem doentes. O Estado Previdência produziu-lhes isto tudo. À borla.

Só que o capital não perde a marca genética da gula. A gula desesperada e compulsiva.

Dá cabo de tudo.

Dantes, num passado pulha e já esquecido, viam-se nos recreios das escolas as crianças paradas, amagadinhas na fome. Estes fulanos querem repetir esta tragédia.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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