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Tratado de Lisboa – Assunto classificado

Miguel Portas descodifica o tratado de Lisboa, que os governos não quiseram referendar e que a Irlanda, a única a fazer referendo, rejeitou. Publicado no Jornal Esquerda nº. 25

A presidência portuguesa da União concluiu os seus trabalhos com a assinatura solene do Tratado de Lisboa. Para José Sócrates, esse foi o momento histórico de uma histórica presidência. Compreenda-se o seu estado de alma. Desta vez, o primeiro-ministro não foi um mero mestre de cerimónias. Ele esteve no centro dos acontecimentos, sentiu-se como "História". Como nos encontramos em plena quadra natalícia, poupemo-lo às más notícias. Seria penoso recordar-lhe que, a 29 de Outubro de 2004, também o presidente do Conselho Europeu de então se julgou "o" centro da História.

Aliás, nesse dia em que os chefes de Estado rubricaram, com pompa e circunstância, o Tratado que instituía uma Constituição para a Europa, todos, sem excepção, se julgaram a "fazer história". E que sobra dela, afinal? Ou, perguntando de outro modo, porque ficou esse Tratado na História? A resposta, como se sabe, não é agradável. A Constituição só ficou na história porque foi chumbada por dois povos em referendos extraordinariamente participados...

O novo Tratado é filho desse estrondoso fracasso da Europa dos governos.

Por uma vez, os líderes europeus confrontaram-se com o medo.

Eles pensavam ter os respectivos povos "no bolso" e dois deles disseram Não. Esta amarga aprendizagem não estava no programa. Os 27 obrigaram-se, assim, a um compasso de espera. Normalmente, isso deveria constituir um bom sinal. Líderes com receio dos seus povos costumam respeitá-los. Sucede que os 27 tiraram dos acontecimentos a pior das conclusões. Em vez de procurarem compreender as profundas e complexas razões do Não de franceses e holandeses - corrigindo o tiro -, os 27 decidiram insistir nos seus próprios acordos... garantindo agora que eles não seriam, de novo, submetidos a referendo. A esta expropriação se resumiu a capacidade de aprender da eurocracia e da Europa dos governos.

Durante os dois dias em que o Tratado foi o assunto, alguém me perguntou: mas afinal o que diz ele? Bela observação. Os portugueses puderam seguir a cerimónia pela televisão, sorriram quando os 27 experimentaram andar de eléctrico, invejaram o Porto de 57 que assinalou o brinde do museu dos coches e até souberam que Gordon Brown perdeu o avião. Mas do Tratado, népias. E porque haveriam eles de saber do que não interessa que se saiba? Afinal, não é o novo texto um assunto "lá deles"?...

O TRATADO... DESCODIFICADO

A principal diferença entre o fracassado Tratado que institui uma Constituição para a Europa e o texto assinado em Lisboa respeita à legibilidade. Enquanto o anterior documento substituía os Tratados existentes, o novo emenda-os. Da mudança decorre a dificuldade. E o dever da descodificação.

1. A papelada

Eis o que os 27 assinaram nos Jerónimos:

    Um Tratado que emenda os dois actualmente em vigor - o que instituiu a Comunidade Europeia, de 1957 (Roma), e o que fundou a União Europeia, de 91 (Maastricht). O primeiro passa a chamar-se Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TfUE) e o segundo, Tratado sobre a União Europeia (TUE).

O Tratado de Lisboa introduziu, respectivamente, 295 e 61 emendas aos 358 e 55 artigos desses Tratados.

Nota 1: Basta reparar no número de emendas para se perceber que o Tratado de Lisboa mexe em todo o articulado existente. De "simplificado" nada tem, portanto.

    13 Protocolos anexos ao Tratado de Lisboa e que pertencem ao seu acervo jurídico, ou seja, têm valor idêntico ao próprio Tratado.
    43 Declarações de Estados-membros relativas às disposições dos Tratados.
    7 Declarações adicionais de Estados-membros relativas aos 13 Protocolos anexos aos Tratado.
    E, finalmente, mais 15 Declarações de vários Estados-membros.

Nota 2: Os Protocolos envolvem todos os Estados e, não raro, repisam emendas incluídas nos Tratados. Um deles merece referência: dá ao Reino Unido o direito de se colocar fora da aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais, o que diminui um dos argumentos em seu favor - o de ser universal no espaço da União.

Nota 3: as Declarações têm um valor muito desigual entre si. Uma é particularmente sintomática: ao contrário da Constituição, o Tratado de Lisboa deixa cair hino e bandeira. Mas 16 dos 27 Estados declaram usar um e outra como símbolos comuns de "União na diversidade". Independentemente do acerto desta Declaração, ela revela a natureza circunstancial e utilitária dos argumentos. Com efeito, uma das "grandes diferenças" entre a Constituição e o Tratado de Lisboa seria o abandono da lógica simbólica que o primeiro texto consagrava. Assim é... nos casos em que convém que assim seja...

2. A estrutura dos Tratados

Eis como ficam as coisas se o Tratado de Lisboa for ratificado:

    O TUE tem seis capítulos e incide exclusivamente sobre a ordem político-institucional da União. Contém disposições relativas à arquitectura de poder entre instituições europeias, inclui a novidade das Cooperações Reforçadas, e ainda se refere à acção externa da União.
    O TfUE é bem mais desenvolvido. Divide-se em 7 partes. As duas primeiras definem princípios e competências e repetem parcialmente o que se escreve no TUE; o miolo dedica-se às Políticas e Acções internas da União em 23 domínios onde esta dispõe de competência exclusiva ou partilhada com os Estados-membros; finalmente, o TfUE desenvolve ainda a Acção Externa da União - nomeadamente a política comercial comum -, bem como as disposições que regulam as várias instituições europeias, seu processo de decisão e as regras financeiras e orçamentais da comunidade.

Nota 3: Sarkozy tem afirmado que o novo Tratado incide exclusivamente nas questões de funcionamento das instituições, o que dispensaria nova consulta popular. Não é verdade. Do mesmo modo que o projecto de Constituição reunia num só texto o conjunto das disposições pré-existentes nos tratados em vigor e os actualizava, o Tratado de Lisboa opta por emendar esses textos recuperando todo o articulado actualizado que já fora proposto pela Constituição. Na realidade, quer o TUE quer o TfUE são vigorosamente mexidos em quase todos os seus artigos. Muito em particular, as políticas internas e externas são, todas, sujeitas a revisão, em particular do ponto de vista dos processos de decisão.

Nota 4: o leitor(a) que deseje perceber como ficará a União se o Tratado de Lisboa entrar em vigor a 2 de Janeiro de 2009 deve ler, não os documentos agora assinados, mas os dois Tratados entre si consolidados. A Assembleia Nacional da Bélgica procedeu a essa dura tarefa. Consultável em www.assemblee-nationale.fr/13/pdf/rap-info/i0439/pdf.

Gato escondido...

Politicamente, a opção dos 27 foi a de salvar o acordo a que tinham chegado para a Constituição, rapando na sua carga simbólica. Esta é a principal deslealdade que cometem com a democracia que afirmam defender. Não foram os cidadãos, mas os Estados que definiram a regra do jogo: os Tratados pressupõem a unanimidade entre os contratantes. Se a Constituição foi rejeitada por dois deles - e sê-lo-ia, com toda a probabilidade por outros ainda - a correcção de tiro deveria ter levado em consideração as objecções que determinaram tal resultado. Ou, em alternativa, deveria ter sido aberto um novo processo de tipo constituinte, mas indiscutivelmente democrático. Foi esta a posição do Bloco de Esquerda e de boa parte das esquerdas europeias.

As perguntas

Juridicamente, a opção dos 27 foi a de mexer nos dois Tratados existentes. Temos vários critérios para avaliar este resultado: as emendas melhoram ou pioram a capacidade de resposta da União aos problemas com que as nossas sociedades se confrontam? Por outras palavras: mexeram os 27 onde deviam? E fizeram-no na boa ou na má direcção?

Mas outro critério se impõe: este é um Tratado de transição - como foi o de Nice, assinado em 2001, que emendava o sistema de votos sem tocar na generalidade do articulado pré-existente - ou, pelo contrário, tende a eternizar-se? Dito de outro modo: este Tratado, por sofrível ou medíocre que seja, abre portas a ulteriores mudanças ou, pelo contrário, enterra por muito e muito tempo qualquer sonho de processo constituinte democrático? Para quem se situe numa perspectiva de refundação democrática e social do projecto europeu, a resposta a esta interrogação é decisiva e, infelizmente, não oferece dúvidas: se ratificado, o Tratado de Lisboa enterra qualquer ideia constituinte.

Com efeito, ele fixa a arquitectura de poder e a ordem económica da Europa dos governos numa fase histórica marcada pelo alargamento em contexto de globalização neo-liberal. Usando uma expressão de Mário Soares, só o "bombardeamento" deste Tratado, impedindo a sua consumação, obriga a baralhar e dar de novo.

"A CARTA NÃO ALARGA O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO DIREITO DA UNIÃO A DOMÍNIOS QUE NÃO SEJAM DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO, NÃO CRIA QUAISQUER NOVAS COMPETÊNCIAS OU ATRIBUIÇÕES PARA A UNIÃO, NEM MODIFICA AS COMPETÊNCIAS E ATRIBUIÇÕES DEFINIDAS NOS TRATADOS"

Esta frase surge na primeira das Declarações dos 27 e ainda na nova redacção do artigo 6º do TUE. A Carta foi apresentada pelos socialistas e sociais-democratas da Europa como a grande vitória do social deste Tratado. A verdade é bem mais modesta.

A Carta é um compromisso pela média baixa dos Direitos. Por exemplo, na questão central do Trabalho, os cidadãos têm "direito a trabalhar" e "direito a procurar emprego" - grande novidade... -, o que é bem diferente de terem "direito ao emprego", a formulação clássica da social-democracia europeia e do movimento dos trabalhadores.

Admitamos, contudo, que o mundo não é perfeito e que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar. É facto que nalguns países europeus, em particular a Leste, a Carta pode ser invocada pelo movimento social contra abusos e atropelos de governos selvagens e hiper-liberais. Mas os países com legislação laboral e de direitos civis mais recuada do que a assumida pela Carta são raros. Compreende-se agora melhor o porquê da frase em epígrafe. Ela salvaguarda a União, ao mesmo tempo que recoloca a dimensão social como competência exclusiva dos Estados membros.

Proibida de mexer com "as competências e atribuições definidas pelos Tratados", a Carta pode ser, por estes, torpedeada. Ela garante, por exemplo, "o direito à protecção de dados pessoais". Mas como é que estes são protegidos nos Tratados? A autorização para a transmissão de dados pessoais no interior da UE obedece a decisão do Conselho e do Parlamento Europeu (artº 16º do TfUE). Este tem, e bem, uma palavra a dizer. Mas já a transmissão de dados pessoais para países fora da UE - recentemente os EUA solicitaram-no... - é competência exclusiva do Conselho, sem qualquer controlo do PE (Artº 39º do TUE). Lê-se e não se acredita. Impedir os abusos no uso de dados pessoais seria ainda mais importante para fora, do que dentro da própria União. Este absurdo tem, contudo, explicação. Resulta dos Tratados considerarem a política externa como um domínio de competência exclusiva dos governos...

Finalmente, a interpretação jurídica dos direitos da Carta deve ter "na devida conta as anotações a que a carta faz referência" (artº 6º do TUE). Nesta aparentemente inócua frase mora a mais perigosa das restrições à Carta. As "anotações" são um conjunto de notas interpretativas que Giscard D'Estaing fez ao documento para servirem de jurisprudência inicial. São todas más.

Mas uma delas é bem pior do que isso. A Carta proíbe a pena de morte e as execuções extra-judiciais. Mas de acordo com as "anotações", abusos de poder por parte das forças da ordem que resultem em execuções não podem ser punidos ao abrigo da Carta, em caso de "legítima defesa", resistência "a uma detenção legal", "revolta" ou "insurreição". Se se compreende o primeiro dos casos, nos restantes três encontramo-nos no domínio do mais puro arbítrio interpretativo. Por exemplo, o crime cometido contra Jean Charles de Meneses, cidadão brasileiro que a polícia londrina julgou ser um terrorista, seria absolvido ao abrigo da norma relativa à resistência a uma detenção legal... não fora o facto do próprio Reino Unido se ter posto de fora da aplicação da Carta.

Nota: o PCP tem criticado a Carta por ela, sendo um compromisso pela média baixa dos Direitos, poder ser invocada em países com legislação nacional mais avançada - como é o caso português. Este argumento não é verdadeiro. A Carta define mínimos e não máximos. Para criticar os seus limites e contradições na aplicação não é necessário recorrer à demagogia. Basta evidenciar a sua mediocridade...

"É A ECONOMIA, ESTÚPIDO"

Artº 57 do TfUE

(...)

3. Só o Conselho, deliberando de acordo com um processo legislativo especial, por unanimidade e após consulta ao Parlamento Europeu, pode adoptar medidas que constituam um retrocesso no direito da União em relação à liberalização dos movimentos de capitais com destino a países terceiros ou deles provenientes

Num tratado de emendas, tão importante é o que muda como aquilo em que não se toca ou apenas se retoca. No caso da epígrafe acima referida, trata-se de um "retoque" que corresponde a uma proibição prática.

Os 27 reafirmam a continuidade dos Tratados em matéria económica e social. Não se toca no Mercado Interno (artigos 26 a 37), na PAC (38 a 43), nos "direitos de estabelecimento" (49 a 55), nos movimentos de capitais (63 a 66), nas exigências de obediência das empresas e serviços públicos face às leis da concorrência (101 a 109, com destaque para o artº 106), salvo para precisar decisões por maioria qualificada ou proibir recuos, obrigando-os à unanimidade.

O mesmo não se pode dizer do articulado relativo à política económica e monetária (119 a 145), que é em grande medida reescrito e que introduz uma novidade relevante: os estatutos do Banco Central Europeu e o seu objectivo da "estabilidade dos preços" são, pela primeira vez, anexados aos Tratados. Neste particular, a UE revela-se ainda mais recuada do que os EUA, onde a Reserva Federal inclui o emprego entre os seus objectivos estatutários.

Embora o Tratado se esforce por afirmar o contrário, na realidade é a política monetária que comanda a política económica e orçamental não apenas da União, como a de cada um dos Estados-membros. O artigo 119 do Tratado de Funcionamento é lapidar:

1. A acção dos Estados membros e da União comporta (...) a instauração de uma política económica fundada sobre a estreita coordenação das políticas económicas, sobre o mercado interno e a definição de objectivos comuns, e é conduzida de acordo com o respeito por uma economia de mercado aberta onde a concorrência é livre. (...)

3. Esta acção dos Estados membros e da União implica o respeito pelos seguintes princípios directores: preços estáveis, finanças públicas e condições monetárias sãs e balança de pagamentos estável

As finanças públicas, em particular os critérios impostos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento são longamente dissecados, bem como os procedimentos em caso de incumprimento. O Tratado procede mesmo à inclusão dos "valores de referência", que são "precisados no protocolo sobre o procedimento respeitante aos défices excessivos, que é anexado aos Tratados" (artigo 126)

Se o comando central impera nas finanças e na moeda, já o mesmo se não pode dizer de domínios onde a ausência de Europa tem sido manifesta e se vai continuar a sentir - a saúde, a educação, a formação profissional e as políticas sociais continuam circunscritas às competências de cada Estado nação. Por outras palavras, não se toca naquilo que seria verdadeiramente importante para uma estratégia de defesa e reinvenção do Estado social. É verdade que aqui e ali se denota uma vontade de ir mais longe. Mas todos os avanços que poderiam ser significativos ficam sujeitos à unanimidade de decisão no Conselho... Um exemplo ilustra bem este compromisso medíocre: os parceiros sociais podem fazer convenções de nível europeu, o que seria indiscutivelmente um avanço. Mas desde que tais convenções toquem a Segurança e protecção social, os despedimentos e o emprego dos imigrantes, o seu reconhecimento implica a unanimidade dos 27...

 

O DIRECTÓRIO

Artigo 9º - C

(...)

3. O Conselho delibera por maioria qualificada, salvo disposição em contrário dos Tratados.

4. A partir de 1 de Novembro de 2014, a maioria qualificada corresponde a, pelo menos, 55% dos membros do Conselho, num mínimo de quinze, devendo estes representar Estados-Membros que reúnam, no mínimo, 65% da população da União.

(...)

A minoria de bloqueio deve ser composta por, pelo menos, quatro membros do Conselho

Com excepção da política externa e de defesa e dos domínios que se mantêm no estrito âmbito dos Estados nação - como a política social, a saúde e a educação... -, a maioria qualificada passa a ser o método ordinário de decisão no Conselho. Esta mudança é nuclear no sistema de decisões e suscita pelo menos três interrogações:

A primeira é relativa às transferências de soberania.

Se na tomada de decisões por unanimidade nem todos são realmente iguais, em termos formais cada Estado mantém a sua soberania. Porque, no limite, pode vetar. Na União, o veto é como a bomba atómica na guerra-fria, uma história de excepção. A sua existência permitiu construir uma cultura de decisão assente no compromisso entre governos. Essa cultura é tão poderosa que contamina, ainda hoje, os domínios onde se decide por maioria qualificada. O problema é que mudando a norma, não lhe sobrevive a cultura.

Até pode ser correcto mudar. Temos maiorias qualificadas a mais e maiorias qualificadas a menos. Preferia outros equilíbrios - os que pusessem o acento tónico numa Europa social; e os que diminuíssem o poder dos governos, reforçando os de um sistema legislativo bicamaral. Mas o que está agora em causa é uma mudança no processo normal de decisão, com consequências sobre a soberania dos Estados. Mesmo que se possa argumentar com o carácter virtual do veto, os 27 não podem, com uma mão, abandonar a palavra "Constituição", hino e bandeira - em nome da importância do simbólico - e com a outra, atacarem o núcleo duro das percepções simbólicas do Estado nação, sem perguntarem a opinião aos eleitores...

A segunda crítica respeita à igualdade entre os Estados. Um coro de críticas levantou-se contra o Tratado de Nice por este criar, informalmente, um "Directório" de quatro países. Por força de um sistema de votos que pondera a população, Alemanha, França, Itália e Reino Unido dispõem hoje de um real poder de veto dentro do Conselho. Por outras palavras, se não podem impor tudo o que querem, nenhuma decisão por maioria qualificada pode ir contra a opinião de três deles.

O Tratado de Lisboa repesca o pior de Nice. O 4º parágrafo do artigo em epígrafe permite formar minorias de bloqueio a decisões por maioria qualificada com apenas 4 Estados, desde que estes, somados, representem 35,01 por cento da população da União. Como esta tem hoje 495 milhões de cidadãos e Alemanha, França, Reino Unido e Itália totalizam 265 milhões, não é difícil perceber o que está em jogo. É verdade que o Reino Unido gosta de correr por fora. Mas aos outros três basta convencer um Estado de média dimensão para chegarem às minorias de bloqueio sem Londres.

O bom senso recomenda que não se atribua a Malta o mesmo peso do que à Alemanha. Praticamente ninguém defende o sistema "um Estado um voto" (em Portugal, só o PCP). Mas entre esta versão minimalista e outra maximalista - os votos em função da população - Lisboa opta pela única variante que, formal e realmente, consagra um princípio de desigualdade entre os Estados: uns com direito de veto e outros sem ele.

A terceira crítica articula o direito de veto com as Cooperações Reforçadas entre um mínimo de nove Estados (artigos 326 a 334 do TfUE). Este novo formato decisional permite aos Estados-motor avançarem com políticas comuns mais exigentes em domínios onde estas obedeçam ainda à unanimidade ou se encontrem "encalhadas". É aquilo a que se chama "Europa a várias velocidades".

Existem bons argumentos para defender a diferenciação de integrações entre os países. Mas uma coisa é fazê-lo porque, existindo políticas comuns, este ou aquele Estado não quer estar nesta ou naquela, e outra, qualitativamente distinta, é uma Europa onde os mais fortes imprimem o ritmo e determinam as esferas de influência. No primeiro caso, todos definem a política; no segundo, alguns impõem a política. Do ponto de vista da democracia, não é indiferente.

Em síntese: a generalização do sistema de decisão por maioria qualificada rompe com a cultura de compromisso hoje dominante. Em abstracto, isso nem é bom nem é mau. No concreto, mantém-se a unanimidade em domínios onde seria imprescindível a maioria qualificada, e reforça-se o poder informal de um Directório de governos e a tese da Europa a várias velocidades. Quem defenda um projecto europeu de maior intensidade democrática e social, não se pode rever nesta recomposição das relações de força. Os países mais periféricos e de menor população também não. Só lá puseram a assinatura ou porque "estão feitos", ou porque perfilham a estratégia do "pelotão da frente"... o que vem a dar no mesmo.

 

A DEFESA ANTES DA POLÍTICA

Declaração 13

As disposições do Tratado referentes à Política externa e de Segurança Comum (PESC), incluindo a criação do cargo de Alto Representante da União (...) e de um serviço para a acção externa, não afectam as responsabilidades dos Estados-Membros, (...) a condução das respectivas políticas de negócios estrangeiros, nem as suas representações em países terceiros e em organizações internacionais.

Na óptica das relações de força entre Estados compreende-se a opção pela unanimidade na política externa. Mas esta escolha engloba outra, ditada pela experiência: a União só tem política externa onde esta seja irrelevante para a Casa Branca, ou, não o sendo, nela os 27 afirmem um interesse comum suficientemente forte para estabelecer uma rota independente dos EUA.

Por outras palavras: nas questões da guerra e da paz o Tratado decide que a UE, ou não existe, ou alinha com os EUA; diversamente, autoriza que a União invista nas alterações climáticas porque aí dispõe de uma vantagem estratégica de natureza tecnológica e industrial.

Este modo de conceber a projecção externa da União condena-a à continuidade na pior das suas tradições - a que combina irrelevância política com interesses económicos. Neste modelo, os valores são, como escreveu Rui Tavares no Público, pura "conversa fiada".

Entretanto, o Tratado de Lisboa inclui uma secção inteiramente nova sobre Política de Segurança e Defesa Comum. O artigo 42º do TUE começa por definir o único compromisso dos 27 no que toca ao aumento de despesa: "os Estados-Membros comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares", o que, evidentemente, não se faz sem dinheiro. Vale a pena insistir: em nenhum outro artigo o Tratado de Lisboa obriga ao aumento de recursos. Só na Defesa...

O texto vai, contudo, bem mais longe. O mesmo artigo estipula no seu parágrafo 5º que "o Conselho pode confiar a realização de uma missão, no âmbito da União, a um grupo de Estados-Membros, a fim de preservar os valores da União e servir os seus interesses". A linguagem diz tudo. Ela não cuida, sequer, de disfarçar os esfarrapados argumentos que se usam em todas as guerras e intervenções militares.

Mas isto ainda é pouco. Porque a ideia é a de que a política de Defesa seja rigorosamente liderada pelo núcleo de países que na União integram a NATO. É assim que o mesmo artigo estipula:

6. Os Estados-Membros cujas capacidades militares preencham critérios mais elevados e com compromissos mais vinculativos (...) tendo em vista a realização das missões mais exigentes, estabelecem uma cooperação estruturada permanente no quadro da União.

7. (...) A cooperação neste domínio respeita os compromissos assumidos no quadro da OTAN, que, para os Estados que são membros desta organização, continua a ser o fundamento da sua defesa colectiva e a instância apropriada para a concretizar.

O articulado não deixa lugar a grandes dúvidas. Assinala uma vitória em toda a linha dos círculos

atlantistas. A unanimidade na política externa obedece, para eles, a um critério defensivo. Mas na realidade o que impuseram em Lisboa foi uma estratégia de construção da política externa a partir de uma defesa militar e securitária subordinada à Nato, ou seja, à Casa Branca. Só compra quem quer...

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(...)

Neste dossier:

A União Europeia depois do "Não" irlandês

Que futuro aguarda a UE depois de o único povo chamado a pronunciar-se ter dado um rotundo "Não" ao Tratado de Lisboa? Este é o tema deste dossier preparado pelo Esquerda.net, um assunto que certamente manterá a actualidade nos próximos meses.

Democracia: e porque não?

Neste artigo, publicado originalmente no Público, Miguel Portas responde a Vital Moreira, que aponta para a "Europa a duas velocidades", uma proposta muito popular em Bruxelas, e defende que o Conselho, atribua ao futuro Parlamento Europeu a iniciativa de uma proposta para a saída da crise. "Uma vez na vida, os eleitores, votando em representantes, diriam que caminho preferem".

Quantos mais NÃOS são precisos para que comecem a ouvir-nos?

Carta aberta aos líderes europeus de Susan George, presidente honorária da ATTAC França, de Jean-Marie Harribey e de Aurélie Trouvé, co-presidentes da ATTAC França, e de Michael Youlton, Coordenador da ‘Campanha Contra a Constituição da UE' irlandesa.

Propostas para um acordo melhor

Neste artigo publicado no Irish Times, a eurodeputada Mary Lou McDonald, do Sinn Féin, defende que o Tratado Europeu está morto e apresenta uma lista de propostas para negociar um melhor acordo.

Os irlandeses votaram por todos os povos da Europa

O povo irlandês acaba de pôr um grão de areia numa mecânica, apesar disso, bem oleada. Parecia que  os governos europeus e os dirigentes da União tinham tomado todas as precauções, a seguir ao duplo não francês e holandês ao Tratado Constitucional europeu (TCE) em 2005. O novo tratado, irmão gémeo do anterior, foi redigido e adoptado à pressa, sem qualquer debate público e para não ser sujeito a nenhuma consulta popular.

Obrigado ao povo da Irlanda!

Numa Sexta feira 13, ficámos a saber que no país do trevo de quatro folhas o povo exprimiu a sua rejeição não à união dos povos da Europa, mas a uma União Europeia que destrói os avanços democráticos e as conquistas sociais, que põe os europeus em concorrência uns contra os outros, que impulsiona a mundialização neoliberal na arena internacional e nas relações bilaterais.

Fingir que o 'Não' irlandês nunca existiu é liquidar credibilidade da Europa

O eurodeputado do Bloco reagiu ao "Não" irlandês ao Tratado de Lisboa e à vontade manifestada por Durão Barroso de prosseguir com as ratificações. "Qualquer opção que, em nome da eficácia de decisão, diminua a democracia e assalte autoritariamente as regras por todos aceites, é um erro e uma irresponsabilidade de consequências incalculáveis", diz Miguel Portas. Leia aqui a declaração do Bloco de Esquerda

Não há Europa sem respeito pelos cidadãos

Neste artigo, publicado originalmente no Diário de Notícias e no blogue de Manuel Alegre, o deputado socialista, defensor do Sim, observa que a hora deve ser de humildade e reflexão perante o funcionamento da democracia, no único país em que o povo foi chamado a pronunciar-se sobre o Tratado de Lisboa. E conclui: "Viva a Irlanda. Porque não há Europa sem respeito pela diferença. Não há Europa sem democracia. Não há Europa contra os cidadãos."
Por Manuel Alegre

O Tratado vai dar à UE demasiado poder

O Sinn Féin foi o único partido parlamentar irlandês a fazer campanha pelo voto Não no referendo de 12 de Junho. Neste artigo, a porta-voz do partido para esta campanha enumera os motivos que levaram à defesa do Não e apresenta propostas para uma futura nova negociação.

Tratado de Lisboa – Assunto classificado

Miguel Portas descodifica o tratado de Lisboa, que os governos não quiseram referendar e que a Irlanda, a única a fazer referendo, rejeitou. Publicado no Jornal Esquerda nº. 25