Passados seis meses do 2º governo Lula e já com mais de dois anos de crises intermináveis de denúncias, CPIs, renovação do parlamento, o que podemos apontar como mudanças ou manutenção do que aconteceu no 1º governo. Aqui vão alguns apontamentos, muito incompletos, naturalmente.
Por Carlos Vianna, especial para o Esquerda.net
O governo garantiu um aumento considerável de sustentação política de forças políticas e dos grandes caciques, leia-se governadores e líderes partidários. Isto a custa do loteamento de cargos e outras práticas tradicionais de distribuição de benesses entre parlamentares, governadores e dirigentes decisivos.
O PT perdeu influência no governo e as contradições entre os discursos de seus dirigentes e a prática e direcção política do governo são gritantes.
As tentativas tímidas de reformas políticas, em especial a introdução de eleições por listas partidárias (modelo europeu) foram e vão sendo sistematicamente derrotadas pela maioria do parlamento, inclusive por muitos parlamentares do PT. É a consagração da corrupção e do atraso político partidário, perpetuando um regime vergonhoso de infidelidade partidária, ou quase de deputados de aluguer. Nada muito diferente do que se passa nos Estados Unidos, onde os lobbies de interesses privados "fazem" a maioria dos deputados e senadores. O sistema político-partidário e as regras do jogo eleitoral não são auto-reformáveis e não se vê luz no fim do túnel.
Em 4 anos e seis meses o governo Lula teve sucessos inegáveis a nível da política económica e social. Obviamente a nível de ordenamento macroeconómico e incentivo ao capitalismo tal como ele se pratica no Brasil. A nível social, houve um aumento da renda dos mais pobres, quer pela estabilidade da inflação e sucessos macroeconómicos (fortalecimento da moeda, queda moderada das exorbitantes taxa de juros, diminuição enorme do spread em empréstimos internacionais, que ajuda o investimento, investimento directo estrangeiro significativo). Além disto, há programas sociais com êxitos meritórios. E mais feijão no prato do pobre, a compra de electrodomésticos por quem nunca os teve, tudo isto é bom, é caminhar no sentido correcto.
Isto garantiu ao governo e em especial ao presidente Lula um capital político que sobrevive e aumenta, apesar de tantas denúncias comprovadas (ou quase) de corrupção entre membros do governo e aliados políticos, como no actual caso do presidente do Senado Renan Calheiros. A corrupção é um mal que se estende e infiltra em toda a sociedade brasileira (e na maior parte dos países do mundo globalizado sedento de lucros) e só o exemplo de cima, a perseguição policial e fiscal e a acção/aplicação dura da Justiça coibiriam em parte esta situação. Infelizmente tal não acontece no Brasil, nas doses cavalares em que seria necessário. Neste quadro, uma das poucas boas notícias é a acção da Polícia Federal, que tornou-se um corpo de elite, respeitado e com autoridade para atacar mais duramente o crime organizado e os crimes de corrupção. Recentemente, prendeu-se ex-governadores de Estado e muitos poderosos envolvidos em trafulhices várias e conhecidas. No entanto, poucos serão condenados. A impunidade já não é total, mas a maioria consegue escapar, apesar dos incómodos de passagens breves pelas cadeias e do fim das carreiras políticas para alguns.
O governo obteve êxitos a nível da política externa. A projecção do Brasil hoje é muitas vezes superior à do governo FHC. O charme intelectual foi superado pelo carisma e simpatia de Lula e seu enorme à vontade entre os grandes do mundo. A articulação do G20, o Mercosul, as boas relações com África do Sul, China e Índia, tudo isso e muitas viagens mais uma agressiva política de apoio ao comércio externo do Brasil potenciaram a influência do Brasil no cenário internacional.
No plano da segurança e da Justiça, deveres primordiais do Estado, único detentor em tese do uso legítimo da violência controlada, a situação é um desastre. A falta da presença e autoridade do Estado em espaços significativos de zonas urbanas e rurais é uma realidade. O poder do crime organizado aumentou enormemente nos últimos 20 anos. Um exemplo: o capitão de exército reformado Ailton Guimarães foi, no tempo da ditadura militar, um conhecido operacional e torturador do DOI-CODI do Rio de Janeiro, o aparelho de repressão criado pelas Forças Armadas. Com o declínio do regime, achou por bem entrar no negócio do Jogo do Bicho, a loteria ilegal mas muito popular existente há quase 100 anos no Rio. Para entrar, matou e aterrorizou, pois o espaço se ganha a tiros neste negócio. Tornou-se um "barão" e respeitado presidente da Liga de Escolas de Samba, que organiza os famosos desfiles. Passou a ser adulado ou mesmo "fez" alguns políticos para garantir o lobby de protecção ao jogo do bicho e às escolas de samba, que, afinal, são um orgulho legítimo da cidade. Quando uma sociedade aceita e o Estado tolera o papel eminente de "cidadãos" como este, está tudo dito.
Por último, uma palavra sobre os dilemas do PT, o Partido dos Trabalhadores e principal responsável pela ascensão e vitória eleitoral do presidente Lula. O PT fará um congresso em Agosto próximo. Para o PT tem sido difícil ser base de sustentação política do governo e manter um discurso de esquerda, principalmente a nível de sua prática parlamentar. A sua capacidade de mobilização popular diminuiu drasticamente, mesmo porque seus dirigentes há muito optaram por uma prática mais institucional, onde o jogo de cargos e benesses é quem mais ordena, como mostrou, no extremo, o episódio do "mensalão". A autonomia do presidente Lula em relação ao seu partido de origem é enorme e os quadros do PT que vão para o governo são antes de tudo leais ao presidente. A ausência de uma reforma política que favorece partidos mais doutrinários e estruturados nacionalmente, como o são, um pouco difusamente, o PT e o PSDB, é fatal para o país, mas também para o PT. A ver vamos os passos seguintes.
Carlos Vianna, 6/7/2007