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Vivemos num país mais livre

No passado dia 11 de Fevereiro os portugueses foram chamados, mais uma vez, a decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todos sabíamos que seria um dia decisivo: tínhamos a hipótese de finalmente avançar para uma sociedade mais democrática ou, caso contrário, permanecer no país atrasado e obscurantista em que vivíamos. Era uma questão fundamental para todas e todos, enquanto cidadãos.

Artigo de Ana Bastos, da coordenadora dos jovens do Bloco de Esquerda, participou no Movimento Jovens pelo Sim, na coordenadora do Porto.

Foi preciso reflectir sobre a experiência de 98 e, com essa aprendizagem, perceber quais deveriam ser as linhas de orientação da campanha oito anos depois.

Percebeu-se que a grande força estaria na convergência de todas as sensibilidades que defendiam a despenalização das mulheres. Só poderíamos ganhar se conseguíssemos envolver muita gente, criar uma grande base de apoio social. Era preciso que cada um sentisse que podia individualmente ter um papel activo nesta luta e, ao mesmo tempo, pertencer a um movimento transversal e unificador. Foi esta a lógica dos movimentos de cidadãos que surgiram - nacionais, com grupos de trabalho locais, abertos a todos, empenhados em chegar a toda a gente, em ir aos locais quase sempre esquecidos. Houve a preocupação em orientar a campanha para determinados públicos, e por isso vimos surgir o movimento Médicos pela Escolha com uma campanha de esclarecimento médico e científico e o movimento Jovens pelo Sim que procurou chegar às camadas mais jovens da população.

O voto dos jovens era determinante neste referendo - geralmente mais abertos à mudança, votavam maioritariamente Sim, mas participavam menos. Foi esse o nosso grande desafio, conseguir mobilizar os jovens para participarem, tanto na campanha como no referendo.

A participação no movimento Jovens pelo Sim permitiu-nos fazer uma excelente aprendizagem de trabalho unitário em torno de um objectivo comum. O movimento, formado por jovens de várias juventudes partidárias, de movimentos sociais, de associações juvenis, artistas, rapidamente conseguiu integrar um grande número de pessoas que se juntaram simplesmente pelo Sim à despenalização. As reuniões abertas e os fóruns na Internet permitiram um crescimento muito rápido do grupo. Este alargamento trazia alguns riscos: juntar tantas pessoas com perspectivas diferentes podia conduzir à tentativa de controlar o movimento por parte de um grupo, ou resultar em acções pouco consequentes. Por outro lado trazia novas perspectivas e diferentes formas de reflectir e intervir.

O movimento demonstrou uma grande maturidade: conseguimos integrar todos os que a nós se juntaram, procurámos os pontos de convergência e juntámos esforços, esquecemos algumas divergências partidárias mantendo a nossa identidade, definimos uma linha de acção comum. Daqui resultou um movimento coeso que fez uma campanha séria e coerente, procurando esclarecer as dúvidas de todos. Ao mesmo tempo aproximou-se dos jovens através da música, da poesia ou do teatro, direccionando a sua acção para as escolas, faculdades, bares e cafés mas também para o trabalho de rua. Fizemos uma campanha dinâmica, original e que chegou a todos os pontos do país. Mostramo-nos capazes de criar um movimento verdadeiramente mobilizador e fomos um exemplo de trabalho de convergência, cooperação e abertura.

Em 98 muitos de nós eram crianças e guardam apenas uma lembrança vaga do referendo, outros não podiam ainda participar e muitos dos que podiam não o fizeram. Oito anos depois os jovens não quiseram perder a oportunidade de mudar o país, e é também por isso que vivemos num país mais livre desde a noite de domingo.

Ana Bastos

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Mestranda em engenharia da energia e do ambiente.
(...)

Neste dossier:

Dossier: depois do referendo

Além do dossier sobre Carnaval, esta semana apresentamos um segundo dossier: Depois do referendo. Em oito artigos, as autoras e autores debruçam-se sobre o que foi o referendo, em diferentes aspectos, e sobre a próxima evolução da despenalização do aborto.

Vivemos num país mais livre

No passado dia 11 de Fevereiro os portugueses foram chamados, mais uma vez, a decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todos sabíamos que seria um dia decisivo: tínhamos a hipótese de finalmente avançar para uma sociedade mais democrática ou, caso contrário, permanecer no país atrasado e obscurantista em que vivíamos. Era uma questão fundamental para todas e todos, enquanto cidadãos.

A sujeita

São bastantes as consequências sociais da despenalização do aborto. Algumas afirmam-se de imediato, mudando comportamentos, atitudes políticas, diferenças de classe. Outras têm efeito cultural, já e num prazo longo.
Bem se entende o alcance valorativo do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, em termos de qualidade de saúde, recuperação do auto-controlo da contracepção, unidade e planeamento da família, autonomia emocional da mulher. Mais do que em qualquer outro momento da vida age sobre a situação da gravidez adolescente, e a intensidade do facto é pluri-geracional.

Pensar a política

Pensar a política é um conjunto de três artigos de Francisco Louçã publicados, em crónicas de opinião em esquerda.net, nos dias seguintes ao referendo. Republicamo-los aqui neste dossier como um todo, com três partes.
Terminado o referendo, creio que é útil pensar e discutir em detalhe as suas principais lições. Esse é o objectivo desta crónica, e começo por um tema que é fundamental para definir uma estratégia para a esquerda política em Portugal: a esquerda deve ou não promover uma política unitária?

12 de Fevereiro - o dia seguinte

A vitória do "Sim" no dia 11 de Fevereiro foi inequívoca. A maioria do povo português votou pela despenalização do aborto, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Houve quem tentasse pôr este resultado em causa - o Referendo não foi vinculativo. Juridicamente não foi, é verdade. Mas só um grande descaramento e uma grande falta de pudor político e ético, pode colocar em causa a sua legitimidade política.

Sim de crentes

O que se jogou no referendo de 11 de Fevereiro foi também a defesa da autonomia de um Estado laico moderno. Entendamo-nos: não foi em nome de um laicismo primário e passadista, que anseia inconfessadamente confinar a Igreja à sacristia, que o Sim combateu. Tivesse sido assim, e seria um contra-senso total o testemunho público de tantos/as católicos/as do lado da vontade de mudar a lei. O que essa presença pública desassombrada de católicos/as - que, enquanto tal, deram razões da sua adesão ao Sim - evidenciou foi uma convergência social alargada na defesa da autonomia da lei (e sobretudo da lei penal) relativamente às construções morais de fundamento confessional. A bandeira do Estado laico não é a do silêncio das crenças religiosas.

IVG é um acto médico

Derrotado o Não e votada em referendo a despenalização do aborto, logo se levantou uma enorme confusão e discussão em torno da aplicação prática da IVG. Os derrotados, pretendem agora baralhar, dificultar e impedir que se venha a cumprir a vontade largamente afirmada pelos portugueses e portuguesas no dia 11 de Fevereiro. É esse o sentido e o objectivo de todo este alarido.

E após o referendo?

A vitória do SIM neste referendo do passado dia 11 de Fevereiro veio permitir finalmente que as mulheres deixem de ser penalizadas por praticarem um aborto até às 10 semanas de gravidez, por motivos que só a elas dizem respeito.
Ainda no rescaldo desta campanha, não pode deixar de ser sublinhada a importância que os movimentos de opinião ligados ao SIM tiveram, na sua diversidade, tendo sido capazes de dar resposta às iniciativas e demagogias dos movimentos do NÃO.

Referendo e Feminismos

Virou-se uma página na História das mulheres com a vitória do SIM no último dia 11 de Fevereiro. Fortes abraços, porque as palavras não chegavam, as lágrimas no canto dos olhos, a alegria estampada nos rostos. As mensagens a chegarem a cada minuto. Foi assim por todo o lado onde se festejou este tão bem merecido resultado. Do Porto, a Maria José Magalhães dizia-me: "Isto parece o 25 de Abril". E recordei a revolução inacabada nesta área tão importante dos direitos das mulheres. Finalmente, 33 anos após Abril, as mulheres podem sair da menoridade quanto à decisão sobre a sua vida sexual e reprodutiva. Um espaço da cidadania que tardava em chegar. Uma cidadania que abre caminhos a uma "nova cidadania que recusa a democracia mitigada" no dizer de Andreia Peniche.(1)