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A sujeita

São bastantes as consequências sociais da despenalização do aborto. Algumas afirmam-se de imediato, mudando comportamentos, atitudes políticas, diferenças de classe. Outras têm efeito cultural, já e num prazo longo.
Bem se entende o alcance valorativo do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, em termos de qualidade de saúde, recuperação do auto-controlo da contracepção, unidade e planeamento da família, autonomia emocional da mulher. Mais do que em qualquer outro momento da vida age sobre a situação da gravidez adolescente, e a intensidade do facto é pluri-geracional.

Em termos de incidência nas classes sociais ninguém ignora que a despenalização do aborto cria as condições para que as mulheres sem desafogo económico possam recorrer ao serviço nacional de saúde, sem a carga de pagamentos a privados clandestinos ou privados estrangeiros.

O desaparecimento para breve do aborto clandestino levará ao fim de um negócio obscuro e perigoso que envolvia muita gente, em serviço directo e apoios indirectos. Mas, sobretudo, acaba uma rede de cumplicidades e encobrimento muito vasta, uma espécie de sociedade-providência negativa.

A despenalização do aborto induz também alterações nas atitudes políticas, com reflexos sociais: falar da despenalização em prol da saúde pública é agora limitado, exige-se uma política coerente de saúde sexual e reprodutiva utilizando serviços públicos vários, SNS, educação, segurança social, protecção de menores.

Todavia, as mudanças sociais não são só de direitos, meios e comportamentos, o que em si já é de monta. As alterações mais significativas são sócio-culturais. E sobre estas não terminou a batalha política.

Sempre conhecemos os obstáculos e as resistências à auto-determinação sexual das mulheres. Neste referendo esse acabou por ser o foco de todos os ultra-conservadores, injuriando a "liberalização", o "aborto a pedido". O aborto constitui uma decisão de recurso extremo mas é sempre uma decisão de personalidade, autónoma e não mediada. A capacidade de auto-decisão legal da mulher completa o arco das suas escolhas livres e responsáveis. A larga maioria da sociedade não aceitou tutelas de qualquer ordem. A auto-determinação sexual de uma cidadã confere mais força ao papel social da mulher em geral e à igualdade de direitos numa democracia moderna.

O ferrete sobre a decisão subordinante veio sempre a par com a produção cultural da vergonha da "mulher em falta". É certo que a legalidade não desfaz o estigma por encanto. E um estigma mais punitivo do que a punição legal, note-se. Mas sem dúvida permite colocar na defensiva os "juízes morais". E este facto é singularmente o facto mais histórico de todos quantos se desprendem do veredicto popular. Os reaccionários sempre tiveram muitas inquisições ao dispor no portugal profundo. E desta vez a derrota é severa. Porque foi a chamada "sociedade civil" que os derrotou, não lhes deixando margem para contestações populistas, nem na Madeira.

Sobrestima-se o factor europeu neste desenlace. As democracias europeias foram também no passado um ponto a favor do derrube da ditadura mas não fizeram o 25 de Abril de 74. Também agora a dominante europeia sobre IVG era um facto favorável. Mas o concurso da despenalização provém de uma luta social, política e cultural muito de cá. E só possível, cá como lá, com uma elevadíssima participação da mulher no trabalho assalariado e não mais remetida à dependência doméstica. Eis aí as fadas do trabalho.

O resultado do referendo confirma a laicidade do Estado constitucional. Aquilo que alguns apodam de "crise de valores" do Estado é apenas a sua própria crise de apoio social. Tudo isso nos remete para um debate em curso: a laicidade da sociedade. Os conservadores mal se conformam com a laicidade do estado mas querem impor o conceito de uma sociedade não laica. Esse conceito é tão totalitário quanto o anterior. Na verdade, a sociedade é plural nas opções religiosas e não-religiosas. A discussão de éticas individuais ou de grupo, sejam elas reveladas, inspiradas ou vinculadas em morais religiosas ou positivas, é muito variável. A sociedade é plural não apenas pelos conceitos que toma mas também na medida em que os toma. Para muitos a utilização do preservativo não obsta à eucaristia, por exemplo.

E isso quer dizer que as religiões enquanto instituições estão submetidas a um crivo individual, transportado pela democracia política, em que cada uma e cada um faz o seu menu particular dos seus critérios de juízo social. Se a reacção dos cultos organizados, em particular da igreja católica, for a da totalização do "múnus da pastoral" a desintegração civil da organização religiosa é a continuidade do processo. Não é um problema de "catequizar" os crentes, a questão é respeitar a liberdade do crente enquanto cidadão. O estado laico depende de uma sociedade plural em que o culto e o não-culto são garantidos e a escolha é individual. Esta questão é chave porquanto determina a luta pela defesa e aprofundamento dos direitos civis e o conjunto das transformações sociais.

Na realidade, o que ganha espaço é uma sociedade mais solta de comandos religioso-seculares. Dispensa-se bem o folclore anti-clerical mas dispensa-se ainda mais o lote dos democratas medrosos das batinas. E isto tem tudo a ver com a evolução da consciência social das juventudes de todos os géneros. Ninguém se esqueça que o Sim foi juvenil.

O feminismo averba uma vitória imensa. Porque é da mulher sujeita de direitos que falamos. Porque é de uma maioria popular, independentemente do género, que se projecta em plenitude uma sujeita de direitos. Porque o feminismo foi inteligente fazendo um combate universal. Ninguém conseguiu culpar ou desculpar as mulheres. O que ficou foi: anda para a frente. É isso que se diz a um(a) sujeito(a) de direitos! E neste aspecto muito se aprende como minorias realizam maiorias sociais. Faltam outros combates sociais: porque a sujeita de direitos está a perder noutros campos: no trabalho, na profissão, no salário, no apoio social. Outros combates civis, declaradamente políticos, convocam a sujeita política: a violência de género como uma trincheira da subalternidade imposta pelo neo-patriarcado.

Luís Fazenda

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
(...)

Neste dossier:

Dossier: depois do referendo

Além do dossier sobre Carnaval, esta semana apresentamos um segundo dossier: Depois do referendo. Em oito artigos, as autoras e autores debruçam-se sobre o que foi o referendo, em diferentes aspectos, e sobre a próxima evolução da despenalização do aborto.

Vivemos num país mais livre

No passado dia 11 de Fevereiro os portugueses foram chamados, mais uma vez, a decidir sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez. Todos sabíamos que seria um dia decisivo: tínhamos a hipótese de finalmente avançar para uma sociedade mais democrática ou, caso contrário, permanecer no país atrasado e obscurantista em que vivíamos. Era uma questão fundamental para todas e todos, enquanto cidadãos.

A sujeita

São bastantes as consequências sociais da despenalização do aborto. Algumas afirmam-se de imediato, mudando comportamentos, atitudes políticas, diferenças de classe. Outras têm efeito cultural, já e num prazo longo.
Bem se entende o alcance valorativo do acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, em termos de qualidade de saúde, recuperação do auto-controlo da contracepção, unidade e planeamento da família, autonomia emocional da mulher. Mais do que em qualquer outro momento da vida age sobre a situação da gravidez adolescente, e a intensidade do facto é pluri-geracional.

Pensar a política

Pensar a política é um conjunto de três artigos de Francisco Louçã publicados, em crónicas de opinião em esquerda.net, nos dias seguintes ao referendo. Republicamo-los aqui neste dossier como um todo, com três partes.
Terminado o referendo, creio que é útil pensar e discutir em detalhe as suas principais lições. Esse é o objectivo desta crónica, e começo por um tema que é fundamental para definir uma estratégia para a esquerda política em Portugal: a esquerda deve ou não promover uma política unitária?

12 de Fevereiro - o dia seguinte

A vitória do "Sim" no dia 11 de Fevereiro foi inequívoca. A maioria do povo português votou pela despenalização do aborto, até às 10 semanas, por opção da mulher, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado.
Houve quem tentasse pôr este resultado em causa - o Referendo não foi vinculativo. Juridicamente não foi, é verdade. Mas só um grande descaramento e uma grande falta de pudor político e ético, pode colocar em causa a sua legitimidade política.

Sim de crentes

O que se jogou no referendo de 11 de Fevereiro foi também a defesa da autonomia de um Estado laico moderno. Entendamo-nos: não foi em nome de um laicismo primário e passadista, que anseia inconfessadamente confinar a Igreja à sacristia, que o Sim combateu. Tivesse sido assim, e seria um contra-senso total o testemunho público de tantos/as católicos/as do lado da vontade de mudar a lei. O que essa presença pública desassombrada de católicos/as - que, enquanto tal, deram razões da sua adesão ao Sim - evidenciou foi uma convergência social alargada na defesa da autonomia da lei (e sobretudo da lei penal) relativamente às construções morais de fundamento confessional. A bandeira do Estado laico não é a do silêncio das crenças religiosas.

IVG é um acto médico

Derrotado o Não e votada em referendo a despenalização do aborto, logo se levantou uma enorme confusão e discussão em torno da aplicação prática da IVG. Os derrotados, pretendem agora baralhar, dificultar e impedir que se venha a cumprir a vontade largamente afirmada pelos portugueses e portuguesas no dia 11 de Fevereiro. É esse o sentido e o objectivo de todo este alarido.

E após o referendo?

A vitória do SIM neste referendo do passado dia 11 de Fevereiro veio permitir finalmente que as mulheres deixem de ser penalizadas por praticarem um aborto até às 10 semanas de gravidez, por motivos que só a elas dizem respeito.
Ainda no rescaldo desta campanha, não pode deixar de ser sublinhada a importância que os movimentos de opinião ligados ao SIM tiveram, na sua diversidade, tendo sido capazes de dar resposta às iniciativas e demagogias dos movimentos do NÃO.

Referendo e Feminismos

Virou-se uma página na História das mulheres com a vitória do SIM no último dia 11 de Fevereiro. Fortes abraços, porque as palavras não chegavam, as lágrimas no canto dos olhos, a alegria estampada nos rostos. As mensagens a chegarem a cada minuto. Foi assim por todo o lado onde se festejou este tão bem merecido resultado. Do Porto, a Maria José Magalhães dizia-me: "Isto parece o 25 de Abril". E recordei a revolução inacabada nesta área tão importante dos direitos das mulheres. Finalmente, 33 anos após Abril, as mulheres podem sair da menoridade quanto à decisão sobre a sua vida sexual e reprodutiva. Um espaço da cidadania que tardava em chegar. Uma cidadania que abre caminhos a uma "nova cidadania que recusa a democracia mitigada" no dizer de Andreia Peniche.(1)