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“Atrás do trio eléctrico só vai quem pode pagar”
Quando as escolas de samba do Rio de Janeiro começaram a desfilar em recinto fechado (primeiro fechou-se a avenida Presidente Vargas e depois construiu-se o sambódromo, uma espécie de estádio para ver os desfiles), o carnaval de Salvador da Bahia passou a ser o maior carnaval de rua do Brasil. Nessa altura, como cantava Caetano Veloso, atrás do trio eléctrico só não vai quem já morreu." Hoje tudo mudou. Como mostra esta entrevista da Carta Maior com o geógrafo Clímaco Dias, é preciso dinheiro (e muito) para pular no carnaval de Salvador.
CARNAVAL DE SALVADOR
"Atrás do trio eléctrico só vai quem pode pagar"
Em entrevista exclusiva à Carta Maior, o professor Clímaco Dias explica como a hegemonia dos blocos particulares, com segregação e exclusão, acabou com a festa popular mais famosa do Brasil.
Carlos Gustavo Yoda - Carta Maior*
As horas passam. E corre o relógio em contagem regressiva no portal eletrônico do Carnaval de Salvador 2007 (visite aqui). "O coração do mundo bate aqui / Feliz de quem pode escutar / Minha cidade é sua / Pode vir", canta Daniela Mercury o hino deste ano de um dos carnavais mais conhecidos do mundo.
Só que a história do "pode vir, pode chegar" não é bem assim. Desde os anos 90, com a explosão da Axé Music, os tradicionais trios eléctricos que democratizaram e popularizaram a festa nos anos 60 e 70 acabaram tornando-se um negócio milionário que atraiu grandes tubarões da produção e do marketing cultural.
Para cair nessa folia, é preciso ter dinheiro. Um pacote de um camarote famoso para três dias de brincadeira chega a custar mais de R$ 2 mil (cerca de € 730), com direito a foliar com DJ Marky e Fat Boy Slim (ah.. assim, sim). Pular na rua também custa caro: o Camaleão, um dos mais conhecidos blocos carnavalescos, não sai por menos de R$ 840 (€ 306) o abadá (roupa de identificação que permite a entrada no bloco).
Este ano, a prefeitura chegou a organizar um pequeno ‘Camarote do Povo' (os ingressos são trocados por quilos de alimentos), mas que deve atender apenas a 400 brincantes, e não está no roteiro dos grandes destaques da folia. Assim acontece a maior festa popular do Brasil: excluindo.
"Da segunda metade do século XX para cá, chegaram os trios eléctricos que romperam com a festa elitizada dos clubes e mansões. Só que, hoje, o trio eléctrico é quem atende à elite. A música do Caetano Veloso expressou muito bem em sua época: ‘Atrás do trio eléctrico só não vai quem já morreu' (1969). Com o passar do tempo, esse trio eléctrico foi transformado em mercadoria e instrumento de ganho de capital. Então nasceu a corda para cercá-lo, e surgiram os blocos pagos, e os camarotes. Então, atrás do trio eléctrico só vai quem pode pagar", analisa o professor de Geografia da UFBA, Clímaco Dias.
Em sua dissertação de mestrado, Carnaval de Salvador - Produção do Espaço de Exclusão, Segregação e Conflito, o pesquisador ataca todos problemas trabalhistas e de conflitos classistas da festa. Em entrevista exclusiva à parceria Carta Maior e Cultura e Mercado, Clímaco Dias explicou como a hegemonia dos blocos particulares acabou com a festa popular mais famosa do Brasil.
Carta Maior - Existe segregação de classe no Carnaval de Salvador?
Clímaco Dias - Existe uma segregação violenta de classes e de grupos sociais. O Carnaval de Salvador segrega até mesmo no espaço físico, como na Barra. Lá é onde desfilam os principais nomes do Axé Music, é uma festa para basicamente a classe média. O povo vai, mas a hegemonia dos blocos e camarotes é classe média. O povo é um espectador de segunda categoria. O carnaval do centro da cidade é popular, mas é um popular que não tem uma organização e disposição de divulgação dos desfiles de blocos afros. Isso acaba deixando o espaço um tanto esvaziado. Isso só não acontece no horário em que o desfile está sendo transmitido pela TV. Isso é só um exemplo do módulo hegemónico. Mas existem vários carnavais na Bahia. Agora, todos os carnavais são hegemonizados por um pequeno grupo de artistas. De meados dos anos 90 para cá, meia dúzia de artistas são responsáveis por organizar as principais atracções do carnaval. Aí o que acontece? Ivete Sangalo tem fila de patrocinadores, só ela este ano terá sete patrocínios. Enquanto isso, a prefeitura de Salvador não conseguiu fechar uma cota ínfima de patrocínio de R$ 8 milhões. O governo do estado deu R$ 3 milhões, mas ainda faltam mais de R$ 2 milhões para completar a cota. Então, é fácil perceber que a prefeitura fica o tempo todo de pires na mão. E a iniciativa privada não se interessa, pois os blocos dos artistas consagrados dão mais visibilidade às marcas.
CM - E a questão do uso do espaço público? Esses camarotes e blocos não revertem benefícios à administração municipal?
CD - O fenómeno do camarote é apenas uma continuação do que acontecia com os blocos. Os blocos são algum tipo de entidade privada que usam o espaço público e nobre e fazem pagamentos ínfimos hoje em dia. Até pouco tempo atrás, eles não pagavam nada, pois vinham em nome de entidades sociais. Hoje as produtoras já pagam, mas é muito pouco. E nós somos o país da Lei Rouanet [lei que atribui benefícios fiscais às empresas que investirem em cultura]. Só Daniela Mercury conseguiu, há pouco, R$ 800 mil pela lei para montar seu bloco particular. É complicado, isso. E a discussão do espaço público em Salvador é primitiva. Até a esquerda fecha a praia para festa privada no reveillon. Eu cheguei a escrever um artigo sobre isso e um colega de esquerda me enviou um e-mail reclamando, dizendo que ele pagava todas as taxas para usar o espaço. Como se pagar todas as taxas fosse o suficiente para cercar uma praia que é pública.
CM - Mas o Carnaval de Salvador nem sempre foi assim. Em que momento da história ele deixou de ser popular?
CD - O nosso carnaval é muito dinâmico. Se pegarmos do início do século XX até hoje, nós já passamos por quatro ou cinco formas de brincar o carnaval. Da segunda metade do século XX para cá, chegaram os trios eléctricos que romperam com a festa elitizada dos clubes e mansões. Só que hoje, o trio eléctrico é quem atende à elite. A música do Caetano Veloso expressou muito bem a sua época: "Atrás do trio eléctrico só não vai quem já morreu" (1969). É porque o trio eléctrico conduzia o povo democraticamente atrás de si. Com o passar do tempo, esse trio eléctrico foi transformado em mercadoria e instrumento de ganho de capital. Então nasceu a corda para cercá-lo, e surgiram os blocos pagos. Então, atrás do trio eléctrico só vai quem pode pagar. Hoje, mesmo esse modelo é um modelo em crise. Não tem mais como avançar. Ele continua excluindo cada vez mais, só que o mercado fonográfico do Axé entrou em crise. O Axé Music tocava nas rádios brasileiras o ano todo. Agora, mal toca no carnaval. E cada dia mais o número de artistas que surgem é bem menor do que no passado. Se formos verificar a década de 90, explodiu Daniela Mercury, Ivete Sangalo, Carlinhos Brown, Tatau, Margareth e vários. Coisas boas e a maioria tudo ruim. E estavam toda semana nos media. Hoje isso ficou mais restrito. E o pior é que eles vêm com um discurso de que fazem um ‘trio independente'. É um pouco da volta dos trios antigos. Mas isso é uma forma deles conseguirem os patrocínios. E aqueles que pagavam para entrar no bloco estão subindo para os camarotes. E os blocos e os camarotes vivem brigando pelo direito de arena. Isso é o maior sintoma da crise e como o carnaval está se transformando.
CM - Mas e as organizações sociais e agremiações não se mobilizam para melhorar isso?
CD - As organizações sociais precisam discutir isso, mas não há mobilização para rediscutir o papel do carnaval de Salvador. O jornal A Tarde publicou há pouco que muitas entidades e blocos afros estavam com problemas nas contas e não receberiam verba da prefeitura. Depois voltaram atrás e resolveram liberar o dinheiro para não prejudicar todas. E o carnaval popular tem esse tipo de problema. Tem também a questão do tamanho das entidades. O bloco Filhos de Ghandi tem cinco mil pessoas. Outros pequenos afoxés não têm nem setenta batuqueiros. Não dá para eles andarem juntos o tempo todo. Tem outra questão que é muito perversa. Nos folhetos de divulgação do carnaval, parece que há a maior democracia, pois eles colocam todos os blocos na divulgação do cardápio cultural. No entanto, muitos deles não chegam a sair para rua, pois não têm estrutura e nem patrocínio. Isso não é dito nunca. Fica tudo como se fosse uma grande alegria nessa proposta falsa de ‘magia e alegria na Bahia'.
CM - O poder público precisa ser mais actuante na regulação e organização da festa?
CD - Tem uma questão que transcende o próprio Estado. As organizações populares e o próprio Estado ficaram reféns desses seis ou sete nomes que controlam o carnaval. É uma situação extremamente difícil. Uma pessoa do povo vai à rua e se ela não vê um desses blocos ela não foi ao carnaval. É difícil gestar um modelo sem diminuir o poder dessas pessoas, com elas tendo esse efeito bombástico no imaginário popular.
CM - Com a nova administração do Estado nas mãos do Jacques Wagner (PT), que vem com uma proposta progressista depois de anos do sufocamento coronelista dos Magalhães, não há uma abertura para rever políticas para a cultura?
CD - Não vejo agora, que o governo vá tomar uma postura decisiva na mudança desse quadro.
CM - E o senhor coloca nesse bolo o ministro Gilberto Gil. Não é um contra-senso o Gil músico que participa desses megablocos e o Gil ministro que trabalha diversidade cultural?
CD - Gil é o grande homenageado por esses módulos, ele nunca se estabeleceu no centro da cidade. Ele é dono de camarote na Barra. Então eu não vejo muita diferença entre ele e os outros, não. É claro que ele tem uma expressividade e importância muito grande, não serei injusto com ele. Ele tem uma força muito grande com as expressões populares. Mas o Gil músico é o do camarote da Barra, não é o do Gil preocupado em dar outra direcção ao Carnaval da Bahia.
CM - Em outras regiões da Bahia ainda existe o carnaval popular?
CD - Existe, mas é pouco. Nos anos 90, esse modelo de carnaval se reproduziu como uma praga.
CM - Mas até aquela coisa de carnaval o ano inteiro no Brasil acabou, né?
CD - Sim, faz parte da crise. Netinho já chegou a ter 18 blocos em todo o país. A maior facturação deles não era no carnaval. Era nas micaretas o ano todo pelo Brasil. Até em São Paulo tinha o ‘SP Folia'. Mas isso acabou. O modelo está em crise, volto a afirmar.
CM - Nos anos 90, a câmara de vereadores de Salvador chegou a abrir investigação por racismo nos blocos?
CD - Sim. Alguns blocos chegavam a pedir fotografias para quem quisesse comprar o abadá e seleccionavam pela cor os convidados. É claro que hoje não existe mais. A segregação hoje é dos pobres que não podem pagar para brincar a nossa festa mais popular. O capital fala mais alto. E o negro é sinónimo de pobre.
CM - Em sua pesquisa de mestrado, o Sr. trata muito das questões trabalhistas. Quais são os principais problemas?
CD - O trabalho infantil é algo assustador, principalmente com os catadores de latas de alumínio. Isso eu já venho denunciando desde 2000 e ninguém toma uma providência. Outro problema eterno sem solução é a condição de trabalho dos cordeiros (as pessoas que carregam as cordas dos blocos particulares). Eles trabalham em condições extremamente precárias. Boa parte deles tem problemas auditivos por trabalharem sem protectores auriculares, não têm luvas e a alimentação é pouca. E no fim de tudo isso, a remuneração é miserável, cerca de R$ 10 por dia, isso quando recebiam. Eu falo essas coisas porque ninguém fala. Todos falam apenas das belezas. Eu não sou porta-voz da beleza. Eu sou o porta-voz dos problemas. Problemas que precisam de soluções urgentemente.
(*) Em parceria com Cultura & Mercado
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