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General versus juiz

O Paquistão que faz 60 anos este Agosto esteve sob regime militar de facto durante exactamente metade da sua vida. Os líderes militares estiveram normalmente limitados a ciclos de dez anos: Ayub Khan (1958-69), Zia-ul-Haq (1977-89). O primeiro foi derrubado por uma insurreição nacional que durou três meses. O segundo foi assassinado. De acordo com este calendário político, Pervez Musharraf ainda tem um ano e meio para partir, mas às vezes acontecem coisas.

Por Tariq Ali, publicado originalmente no Guardian, 16/5/2007

A 9 de Março deste ano, o presidente suspendeu o chefe do Supremo Tribunal. Diferente de alguns dos seus colegas, o juiz em questão, Iftikhar Chaudhry, não tinha renunciado na altura do golpe; tal como tribunais supremos anteriores, concordara com a suposta "doutrina da necessidade" que é sempre usada para justificar judicialmente uma tomada de poder militar. Não era conhecido por activismo judicial e as acusações contra ele estão relacionados com o "uso corrupto do seu poder", mas é um segredo de polichinelo que as recentes sentenças contra o governo num grande número de questões-chave, incluindo a apressada privatização da Karachi Steel Mills em Karachi, a aceitação de que fosse levada a tribunal a questão dos activistas políticos "desaparecidos" e a atitude de levar a sério as vítimas de violação puseram Islamabad em pânico. Poderia este turbulento juiz ir tão longe a ponto de declarar a presidência militar inconstitucional? A paranóia impôs-se.

As estações de TV que fizeram reportagens objectivas foram invadidas pela polícia, destruindo assim a bazófia do regime (até então em grande parte verdadeira) de que interferia menos nos média que todos os seus predecessores.

A decisão despoletou um importante movimento social. Inicialmente confinado aos 80 mil advogados e algumas dezenas de juízes, logo começou a espalhar-se. Isto em si já foi uma surpresa para um país cujo povo se tornou crescentemente alienado do governo de uma elite cujas raízes estão a apodrecer. Também vale destacar que esta oposição da sociedade civil a uma decisão brutal nada teve a ver com religião. Foi uma defesa da independência judicial (apesar de nominal) contra o executivo. Os advogados que marcharam nas ruas fizeram-no para insistir na separação dos poderes constitucionais. Há algo deliciosamente fora de moda nesta luta. Ela não envolve nem dinheiro nem religião, mas princípios. À medida em que cresceu o respeito pelo movimento, carreiristas da oposição que gostam de ir na crista da onda (alguns dos quais tinham organizado os seus próprios ataques ao Supremo Tribunal quando estavam no poder), tomaram a causa como sua.

Como tantas vezes acontece numa crise, Musharraf e os seus conselheiros, em vez de reconhecerem que se tinha cometido um erro e agirem rapidamente para corrigi-lo, decidiram-se por um braço-de-ferro. Como os desfiles de Iftikhar Chaudhry se tornaram mais e mais populares, Islamabad desencadeou a sua contra-ofensiva. O juiz tinha de visitar a maior cidade do país, Karachi. Lá, o poder político está nas mãos do MQM, um repugnante instrumento criado durante a anterior ditadura, viciado em violência e extorsão para protecção, e insensível à moral e às realidades humanas. Foi formado principalmente por famílias pobres de muhajir (refugiados muçulmanos que fugiram do Paquistão na época da partição de 1947), que se sentiram abandonadas pelo Estado. Musharraf também vem de uma família de refugiados de classe média. Por este motivo, o MQM adoptou-o como um dos seus (mesmo se a mãe de Musharraf fosse uma simpatizante comunista e toda a família progressista).

Seguindo as instruções de Musharraf, os líderes do MQM decidiram então impedir que o juiz fizesse qualquer comício em Karachi. Foi isso que levou aos confrontos armados que provocaram cerca de 50 mortes na cidade há poucos dias. Imagens da matança, emitidas na TV Aaj (Hoje) provocaram um ataque à estação por voluntários armados do MQM. Tudo isto levou a uma vitoriosa greve geral, isolando o regime. Se houvesse hoje uma eleição presidencial, poucas dúvidas há que o juiz derrotaria o general. A popularidade de Chaudry só pode ser compreendida num contexto em que os políticos tradicionais se tornaram amplamente desacreditados.

O fracasso de Benazir Bhutto (Partido Popular do Paquistão) de fazer algo de substancial a favor dos pobres que nela votaram teve como consequência uma desilusão maciça. Ela foi afastada do governo, alegadamente por corrupção, e nas eleições seguintes o seu velho rival Sharif (Liga Muçulmana do Paquistão) ganhou por larga maioria, mas na base de uma fraca ida às urnas (30%). Os desiludidos eleitores de Bhutto ficaram em casa.

Nawaz Sharif fez o irmão Shahbaz ministro chefe do Punjab. O seu falecido pai tornou-se o presidente não-oficial do Paquistão e foi envolvido em negociações com um exército descontente. Foi o velho Sharif que disse aos filhos que os generais, não sendo anjos do céu, também podiam ser comprados e vendidos no mercado. Mas não todos. E não Musharraf. A tentativa novelesca de Nawaz Sharif de reformar Musharraf saiu, desastrosamente, pela culatra.

O 11 de Setembro tornou o presidente paquistanês um protagonista-chave na região. Para a elite nativa, foi um presente dos céus. Começou a chover dinheiro, as sanções relacionadas com a questão nuclear foram levantadas, e a UE ofereceu concessões de comércio no valor de mais de mil milhões de euros, e simultaneamente relaxou as tarifas sobre as exportações têxteis paquistanesas. À medida que crescia o envolvimento dos EUA, a elite militar e política paquistanesa entrava na linha. Todos - políticos venais, altos funcionários bajuladores e desmioladas damas de sociedade - aplaudiram o regresso do Paquistão ao seu velho estatuto de estado de primeira linha. Não os islamistas, claro, devido à nova guerra contra eles e os seus amigos do Afeganistão. Durante algum tempo, a única oposição ao regime veio dos islamistas, tanto moderados quanto extremistas, apesar dos diferentes métodos em cada caso.

A tentativa de intimidar um juiz provocou uma nova fissura na sociedade paquistanesa. A violência em Karachi faz com que o compromisso seja difícil para os dois lados. Não há solução fácil. O general devia tirar o uniforme, o juiz devia renunciar às vestes pretas e os dois deviam bater-se no terreno eleitoral, sem obstrução do MQM ou dos numerosos aparatos do estado. Pode parecer uma tentativa de quadratura do círculo, mas há perigos iminentes a menos que os generais aceitem o compromisso.

(...)

Neste dossier:

Dossier Paquistão

Em Abril, o conhecido jornalista do britânico The Independent Robert Fisk, numa entrevista a um jornal egípcio, afirmou que é o Paquistão, não o Irão ou o Iraque, que serve de verdadeiro barómetro para o futuro do Médio Oriente. Porquê? Porque é um país em profunda convulsão, que tem armas nucleares e uma forte influência sobre o futuro do Afeganistão. Um mês depois, a crise do Paquistão agravou-se consideravelmente, e no dia 12 de Maio, 37 pessoas morreram em confrontos entre apoiantes do governo e da oposição na cidade de Karachi.

Quatro vídeos do Paquistão

Divulgamos aqui quatro vídeos do Paquistão.
Dois deles são sobre os protestos dos advogados, em Março e Abril deste ano, que se seguiram ao afastamento do presidente do Supremo Tribunal pelo presidente da República, Perez Musharraf.
O terceiro vídeo é sobre a visita do presidente do supremo a Karachi em Maio passado, quando não lhe foi permitido sair do aeroporto e em que, nos confrontos que se seguiram, morreram 37 pessoas e 150 ficaram feridas.
Por fim, um vídeo de propaganda do exército dos anos 80 e 90.

Amnistia denuncia Islamabad por sequestrar centenas

Entidade de direitos humanos acusa o país, aliado dos EUA na "guerra contra o terrorismo", de prender e interrogar sem acusações, em colaboração com americanos. Muitos são entregues aos EUA e levados para a base militar de Guantánamo, em Cuba, ou para centros secretos de detenção.

O General no seu Labirinto

Neste longo artigo publicado na London Review of Books, o editor da New Left Revew Tariq Ali, escritor, jornalista e activista político paquistanês estabelecido no Reino Unido, descreve com muitos detalhes e profundo conhecimento de causa os principais acontecimentos que marcaram a história do Paquistão desde a sua independência. E conclui: "O primeiro líder militar do Paquistão perdeu toda a popularidade devido a uma insurreição popular. O segundo foi assassinado. O que acontecerá a Musharraf? "

A saída de Musharraf

Na crise que evolui rapidamente no Paquistão, aconteça o que acontecer, o presidente Pervez Musharraf - sobreviva politicamente ou não - é um peso morto. Não consegue controlar a talibanização do Paquistão ou conduzir o país a um futuro mais democrático.

Entre o Império e os talibans

Um ano eleitoral complexo expõe as ambiguidades de um dos países mais populosos do mundo. Aliado estratégico dos EUA desde o 11 de Setembro, o presidente Musharraf busca um difícil equilíbrio, que inclui laços com o islamismo extremista e relação especial com os generais.

A crise do regime é muito profunda

No final de Março, Jim McIlroy, do [jornal australiano] Green Left Weekly, falou com Farooq Tariq, Secretário Geral do Partido Trabalhista Paquistanês, em Lahore. O PTP é uma organização socialista revolucionária que trabalha juntamente com outras forças com o intuito de pôr fim à ditadura do general Pervez Musharraf, enquanto procura unir trabalhadores, camponeses, mulheres e jovens na luta para instituir o socialismo no Paquistão. A entrevista teve lugar no meio de uma campanha de advogados e respectivos apoiantes para recolocar no cargo o entretanto suspenso Chefe de Justiça do Supremo Tribunal do Paquistão, Iftikhar Mohammad Chaudhry.

General versus juiz

O Paquistão que faz 60 anos este Agosto esteve sob regime militar de facto durante exactamente metade da sua vida. Os líderes militares estiveram normalmente limitados a ciclos de dez anos: Ayub Khan (1958-69), Zia-ul-Haq (1977-89). O primeiro foi derrubado por uma insurreição nacional que durou três meses. O segundo foi assassinado. De acordo com este calendário político, Pervez Musharraf ainda tem um ano e meio para partir, mas às vezes acontecem coisas.