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A catástrofe não acabou

NOVA ORLEÃES UM ANO DEPOIS DO KATRINA
Um ano depois do Katrina, a situação de Nova Orleães continua de desastre. Dos habitantes da cidade, 200 mil não conseguiram voltar para casa. A cidade perdeu mais de 43 mil casas para alugar e as rendas dispararam, empurrando para fora do mercado as pessoas que não podem pagar tais preços. O índice oficial de aumento de rendas é 39%. Água, electricidade, saúde, educação - tudo piorou.

 Nova Orleães um ano depois do Katrina (extractos)

Por Bill Quigley

 Bernice Mosely tem 82 anos e vive sozinha em Nova Orleães. Em 29 de Agosto de 2005, quando o Katrina atingiu a Costa do Golfo, as barragens construídas pelo Corpo de Engenharia dos EUA foram destruídas em cinco pontos e a cidade encheu-se de água.

A sra. Mosley estava no segundo andar da igreja do bairro. Dias depois, um helicóptero regatou-a. Estava tão desidratada que passou oito dias no hospital. O vizinho do lado, de 89 anos, ficou para tomar conta do cão. Afogou-se nos 2,5 metros de água da enchente que cobriu toda a vizinhança.

Hoje, a sra. Mosley vive na sua casa semidestruída. Não tem fogão, nem frigorífico, nem ar condicionado. A metade inferior das paredes não tem estuque, são tábuas de madeira nuas. Guarda a comida num refrigerador de plástico. Duas pequenas ventoinhas fazem o ar quente circular.

Na entrada bem cuidada, há duas virgens de plástico. Num quente dia de Verão, ela desceu, apoiada em muletas, para abrir a porta da cerca. Precisa das muletas porque teve uma cirurgia no joelho e na anca.

A sra. Mosley trabalhou numa fábrica de Nova Orleães durante mais de 30 anos, cozendo uniformes. Quando se reformou, ganhava menos de 4 dólares a hora. "Reforma?", diz, rindo. Vive da segurança social. A casa nunca antes tinha sido inundada. Devido ao orçamento apertado, nunca pôde fazer seguro contra inundação.

Milhares de pessoas como a sra. Mosley voltaram para casa na Costa do Golfo. Vivem em casas que a maioria das pessoas considera, na melhor das hipóteses, ainda em construção ou, na pior, inabitáveis. Como a sra. Mosley, estão a tentar transformar as suas casas arruinadas em lares.

Nova Orleães ainda está em cuidados intensivos. Se viu imagens recentes de televisão, provavelmente tem uma ideia de como a habitação está em má a situação. O que não pode ver é que o resto das instituições, a água, a electricidade, a saúde, o emprego, o sistema educativo, o sistema de justiça criminal - estão em tão mau estado quanto a habitação. Continuamos em maus lençóis. Tal como nós, provavelmente está a pensar: para onde foi o dinheiro prometido?

A sra. Mosley não tem pena de si mesma. "Muita gente está pior", diz. "Deviam ver os que vivem no Lower Ninth, ou em St. Bernard ou no Leste. Sou das que tem mais sorte."

Habitação

Por mais que seja difícil de acreditar, a sra. Mosley tem razão. Muita gente está pior. Centenas de milhares de pessoas da Costa do Golfo continuam deslocadas. Só em Nova Orleães, 200 mil pessoas não conseguiram voltar para casa.

Proprietários de casas da Louisiana, como a sra. Mosley, ainda não receberam um único dólar da assistência federal para reconstruir as suas casas.

Mais de cem mil proprietários da Louisiana estão numa lista de espera de biliões de dólares de assistência do programa Community Development Block Grant (CDBG). Mas, até agora, não foi distribuído dinheiro.

Mas os inquilinos, a maioria dos habitantes de Nova Orleães antes do Katrina, estão ainda pior. A cidade perdeu mais de 43 mil casas para alugar. As rendas nas casas em zonas não atingidas pela enchente dispararam, empurrando para fora do mercado as pessoas que não podiam pagar tais preços. O índice oficial de aumento de rendas é de 39%. Nos bairros mais pobres, os trabalhadores e os idosos dizem que os aumentos de rendas foram muito mais do que isso.

Diante da pior crise de habitação desde o fim da Guerra Civil, o governo federal anunciou que não permitia o regresso de milhares de famílias às suas casas públicas e que ia demolir 5000 apartamentos. Antes do Katrina, mais de 5000 famílias viviam em casas públicas - 88% de lares com mulheres chefes de família e quase todas afro-americanas.

O resultado desta política foi que centenas de milhares de pessoas continuaram deslocadas das suas casas. Apesar de haver nesta situação gente de todas as idades, rendimentos e raças, alguns grupos são mais atingidos que outros. Os trabalhadores pobres, mães de família, afro-americanos, os mais idosos e os deficientes estão a sofrer desproporcionalmente com o facto de não terem casa.

As estatísticas dizem uma parte da história. A Câmara de Nova Orleães diz que a cidade tem actualmente metade do tamanho de antes do Katrina - cerca de 225.000 pessoas. Mas os Correios estimam que apenas 170.000 pessoas voltaram para a cidade e 400.000 não regressaram à área metropolitana. A companhia de electricidade diz que apenas voltaram 80 mil dos seus anteriores 190 mil clientes.
Água e electricidade

Nova Orleães continua a perder mais água do que aquela que usa. O Times-Picayune descobriu que o sistema de distribuição de água local tem que bombear mais de 130 milhões de galões de água para que 50 milhões cheguem às pessoas. O resto perde-se nos vazamentos, custando ao sistema de água prejuízos de 200 mil dólares-dia. A falta de pressão de água, metade da de outras cidades, cria graves problemas no consumo, na higiene, no ar condicionado e na prevenção de fogos.

Apenas metade das casas de Nova Orleães tem electricidade. Quebras de energia são habituais porque não foram feitos consertos no valor de centenas de milhões de dólares, porque a Entergy New Orleans está na falência. A empresa está a pedir um aumento de tarifas de 25% para se tornar solvente. Mas a empresa-mãe, a Entergy Corporation, anunciou lucros de 282 milhões de dólares no ano passado.

Saúde
No início do mês, em 1 de Agosto de 2006, foi encontrada outra vítima do Katrina na sua residência de Nova Orleães, enterrada sob os escombros. Foi o 28º cadáver encontrado desde Março de 2006.

Metade dos hospitais ainda está fechada. O Charity Hospital, o maior do Estado, está fechado e não há planos de reabri-lo. Os serviços de saúde, na verdade, correm o risco de ainda piorar. O dr. Mark Peters, do concelho do Hopsital Metropolitano de Nova Orleães, diz que dentro de dois ou três meses, todos os hospitais vão ter de fazer redução no atendimento. Porquê? Médicos e funcionários de saúde foram-se embora, e há uma crescente procura por parte de pessoas que não têm seguro de saúde e que antes do Katrina usavam o agora inexistente serviço público de saúde.

Não há hospitais psiquiátricos em toda a cidade. Na área metropolitana, havia 450 camas de psiquiatria, agora há 80.

Os idosos são particularmente vulneráveis. Mais de 70% dos mortos do Katrina tinham mais de 60 anos. Ninguém sabe quantos idosos deixaram de conseguir voltar para casa. Esther Bass, 69 anos, disse ao New York Times, depois de meses de procura de um lugar em Nova Orleães: "Se há apartamentos, são caros demais para mim. E eles dizem que vai haver centros de idosos, mas ainda estão a ser construídos. Nem sabem dizer quando vão estar terminados."

Empregos
Antes do Katrina, havia cerca de 630 mil trabalhadores na área metropolitana de Nova Orleães - agora há pouco mais de 400 mil. Mais de 18 mil empresas sofreram estragos catastróficos na Louisiana. Cerca de um em quatro dos trabalhadores deslocados ainda está desempregado. A educação e a saúde perderam a maioria dos empregos. A maioria não pode voltar porque não há casas a preços razoáveis, creches, transportes públicos e sistema de saúde público.

As mulheres trabalhadoras, especialmente as afro-americanas, continuam a sofrer o fardo mais pesado das consequências do furacão. Os relatórios do Instituto de Investigação da Política Feminina apontam para uma queda da percentagem das mulheres na força de trabalho de Nova Orleães. O número famílias de mãe solteira de Nova Orleães caiu de 51 mil para 17 mil. As mulheres de rendimentos baixos continuam deslocadas por causa da habitação cara e da tradicional discriminação contra as mulheres na indústria de construção.

Dezenas de milhares de trabalhadores imigrantes, muitos indocumentados, vieram para a Costa do Golfo para trabalhar na reconstrução. A maioria recebeu promessas de bons salários e condições de trabalho. Alguns até pagaram para ter acesso ao trabalho na área. A maioria das promessas foi quebrada. Uma volta pela área revela muitos trabalhadores latinos em casas sem electricidade, outros vivendo em carros. Em vários lugares da cidade, famílias inteiras vivem em tendas. Dois relatórios recentemente divulgados sobre direitos humanos documentam os problemas destes trabalhadores.

O transporte público de e para empregos mal-pagos é mais difícil. O sistema público de transportes emprega hoja 700 trabalhadores, contra 1300 antes do Katrina.

Educação pública
Antes do Katrina, 56 mil estudantes estavam matriculados em mais de 100 escolas públicas de Nova Orleães. Para este ano académico, ninguém sabe ao certo quantos estudantes vão matricular-se nas escolas públicas. As estimativas variam de 22 mil a 34 mil.

 

Bill Quigley é um advogado de direitos humanos e professor de direito na Universidade Loyola de Nova Orleães. E-mail: [email protected]

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Neste dossier:

Nova Orleães

Na próxima terça-feira assinala-se o primeiro aniversário do dia em que o furacão Katrina destruiu a cidade de Nova Orleães. Um ano depois, a antes vibrante cidade de Nova Orleães continua a parecer uma área de desastre. Pelo menos 400 mil pessoas da área metropolitana de Nova Orleães não puderam ainda voltar a casa.

A catástrofe não acabou

Um ano depois do Katrina, a situação de Nova Orleães continua de desastre. Dos habitantes da cidade, 200 mil não conseguiram voltar para casa. A cidade perdeu mais de 43 mil casas para alugar e as rendas dispararam, empurrando para fora do mercado as pessoas que não podem pagar tais preços. O índice oficial de aumento de rendas é 39%. Água, electricidade, saúde, educação - tudo piorou.

Documentário

Milhares de pessoas assistiram à pré-estréia do filme de Lee "When the Levees Broke: A Requiem in Four Acts" (Quando os diques se romperam - Um Requiem em quatro actos). As reacções foram de dor e de orgulho. E também de riso diante de declarações feitas sem meias-palavras, especialmente as críticas ao presidente Bush e à Agência Federal de Administração de Emergências (Fema), que foram acusados de lentidão e ineficácia na reacção ao furacão. "Alguém devia ir preso", diz o trompetista Terence Blanchard diante da câmara.

Obra-prima de Spike Lee

No dia em que o Katrina começou o ataque a Nova Orleães, o cineasta Spike Lee participava do festival de cinema de Veneza e recusou-se a deixar o quarto do hotel. "Fiquei lá, de olhos fixos na televisão", disse mais tarde. "Eu não conseguia acreditar que aquilo estava a acontecer nos EUA. O documentário "When the Levees Broke - A Requiem in Four Acts" [Quando as Barragens Se Romperam -Um Réquiem em Quatro Atos], de quatro horas de duração e com depoimentos de mais de cem pessoas é considerado por este artigo da Newsweek "possivelmente o trabalho mais essencial nos seus 20 anos de carreira."

Conclusão do Congresso dos EUA

Uma investigação do Congresso americano descobriu agora que Marty Bahamonde, funcionário da Agência Federal de Administração de Emergências (Fema), constatou o problema da barragem de Nova Orleães e reportou o perigo ao Departamento da Segurança Interna na noite anterior ao acidente. O aviso foi repassado directamente à Casa Branca.

A conclusão é do Congresso, após 5 meses de investigação.

Incompetência americana

Percebemos que os EUA se transformaram num país de Terceiro Mundo quando os libaneses bombardeados recebem mais do que nós", afirma o cartoonista norte-americano Ted Rall, ao comparar os míseros dois mil dólares que o governo dos EUA deu às vítimas do furacão Katrina com o que o Hezbollah deu às vítimas dos bombardeamentos israelitas. O Hezbollah ganha em todas as comparações. Não seria de contratá-lo para reconstruir o World Trade Center?