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A Líbia é outro caso de vigilantismo selectivo do Ocidente

O bombardeamento a Tripoli, enquanto se fortalecem outros déspotas no mundo árabe, mostra como são puramente cínicos os ataques apoiados pela ONU.
Rebeldes líbios. Foto de americanistadechiapas, FlickR

A intervenção dos EUA-NATO na Líbia, com a cobertura do Conselho de Segurança da ONU, é parte de uma resposta orquestrada para mostrar apoio ao movimento contra um ditador em particular e, ao fazê-lo, acabar com as rebeliões árabes, pondo-as sob o controlo ocidental, confiscando o seu ímpeto e a sua espontaneidade e tentando restaurar o status quo anterior.

É absurdo pensar que os motivos de bombardear Trípoli ou de fazer caça aos patos fora de Benghazi são proteger os civis. Esta argumentação em particular foi concebida para ganhar o apoio dos cidadãos da Euro-América e de parte do mundo árabe. "Olhem para nós", diz Obama/Clinton e os sátrapas da UE, "nós estamos a fazer o bem. Estamos do lado do povo." O cinismo absoluto é de tirar o fôlego. Esperam que acreditemos que os líderes com as mãos ensanguentadas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão estão a defender o povo na Líbia. Os aviltados meios de comunicação britânicos e franceses são capazes de engolir qualquer coisa, mas o facto de que liberais decentes ainda se deixem enganar por este lixo é deprimente. A sociedade civil comove-se facilmente por algumas imagens, e a brutalidade de Khadafi ao enviar a sua força aérea bombardear o seu povo foi o pretexto que Washington utilizou para bombardear outra capital árabe. Entretanto, os aliados de Obama no mundo árabe trabalhavam duramente para promover a democracia.

Os sauditas entraram no Bahrein, onde a população está a ser tiranizada e onde se fazem detenções em larga escala. Pouco se informa sobre isto na Al Jazira. Pergunto-me por quê? O canal de TV parece ter sido de certa forma dobrado e forçado a alinhar-se com a política dos seus financiadores.

Tudo isto com o apoio activo dos EUA. O déspota no Iémene, detestado pela maioria do seu povo, continua a matá-lo todos os dias. Nem um embargo de armas, muito menos uma zona de exclusão aérea lhe foi imposta. A Líbia é outro caso de vigilantismo selectivo praticado pelos EUA e pelos seus cães de ataque no ocidente.

Podem também contar com os franceses. Sarkozy estava desesperado para fazer alguma coisa. Incapaz de salvar o seu amigo Ben Ali na Tunísia, decidiu ajudar a livrar-se de Khadafi. Os ingleses, sempre prontos a fazer um favor, tendo escorado o regime líbio nas duas últimas décadas, asseguram-se agora que estão do lado certo para não perder a partilha dos despojos. O que podem conseguir?

As divisões da elite político-militar americana sobre toda esta operação significam que não há um objectivo claro. Obama e os seus sátrapas europeus falam de mudança regime. Os generais resistem e dizem que isso não faz parte do seu cenário. O Departamento de Estado dos EUA está ocupado a preparar um novo governo composto de colaboradores líbios de língua inglesa. Nunca saberemos agora quanto tempo o abalado e enfraquecido exército de Khadafi se manteria unido face a uma forte oposição. O motivo de Khadafi ter perdido apoio no interior das suas forças armadas foi justamente por lhes ter ordenado que disparassem contra o seu próprio povo. Agora ele fala do desejo do imperialismo de derrubá-lo e de roubar-lhe o petróleo, e mesmo muitos dos que o desprezam podem ver que isso é verdade. Um novo Karzai está a caminho.

As fronteiras do protectorado esquálido que o Ocidente vai criar estão a ser decididas em Washington. Mesmo os líbios que, por desespero, apoiam os caças-bombardeiros da Nato, podem – tal como os seus equivalentes do Iraque – vir a lamentar a sua escolha.

Tudo isto poderá, nalgum momento, desencadear uma terceira fase: a crescente fúria nacionalista que transborde para a Arábia Saudita; e aqui, não haja qualquer dúvida, Washington fará todo o necessário para manter a família real saudita no poder. Se perderem a Arábia Saudita, vão perder os Estados do Golfo. O ataque à Líbia, muito ajudado pela imbecilidade de Khadafi em todas as frentes, foi projectado para tirar das ruas a iniciativa, aparecendo como defensores dos direitos civis. Os bahreinis, os egípcios, os tunisinos, os sauditas, os iemenitas não se deixarão convencer, e mesmo na Euro-América são mais os que se opõem a esta nova aventura do que os que a apoiam. As lutas de forma alguma acabaram.

Obama fala de um impiedoso Khadafi, mas a misericórdia do próprio Ocidente nunca cai como suave chuva sobre o terreno abaixo. Ela só abençoa quem venera o mais poderoso dos poderosos.

29 de Março de 2011

Publicado no The Guardian

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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Sobre o/a autor(a)

Escritor paquistanês, activista revolucionário estabelecido em Inglaterra.
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