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O prazer de nos sentirmos vivos

Esta manifestação faz-nos recuperar o gosto pela política num país cansado das elites do poder e do roubo organizado em que se transformou a economia.

Havia um pressentimento, mas ninguém podia ter a certeza se ia ser mesmo. Quem esteve – e fomos tantas e tantos – saberá dizer o que sentiu. Eu vi gente que não via há muito tempo, colegas antigos, amigos de amigos, pessoas com quem me cruzo na cidade mas não sei o nome, vizinhos, família, velhos e novos, muitos jovens. A rua teve mais gente que o facebook, a multidão era muito maior do que pensava e qualquer praça seria pequena. O dia de ontem será lembrado por muito tempo.

Não vale a pena tentar encontrar uma voz única para esta manifestação. Foi exactamente por ser a voz de cada um e cada uma que ela foi tão grande e tão forte. A rua foi o lugar onde toda a gente falou. A única coisa que vale a pena é aprender com o que se passou.

Manif de gerações

Esta foi uma manifestação de gerações. Ao contrário de quem tentou difundir a ideia segundo a qual a condição da geração à rasca era culpa da “geração mais velha”, supostamente instalada em “garantismos” tão extravagantes como “contratos de trabalho”, “carreiras” e direitos sociais, esta manifestação foi uma lição de solidariedade entre gerações contra quem nos explora. Estiveram os jovens desemprecários na rua, que querem trabalho e autonomia; estiveram estudantes ameaçados pela escravatura laboral e empurrados para empréstimos para estudar; esteve quem tem salários de 500 euros independentemente da idade, num país em que 20% dos pobres trabalham; estiveram os pais e as mães preocupados com a falta de oportunidade dos filhos; estiveram os avós da geração à rasca, também eles com a corda ao pescoço depois dos cortes nos apoios sociais ou do congelamento de pensões que, tantas vezes, não ultrapassam os 300 euros por mês. E estiveram os netos a falar pelos avós. Essa diversidade fez também a beleza do protesto.

O gosto da política

Esta manifestação faz-nos recuperar o gosto pela política num país cansado das elites do poder e do roubo organizado em que se transformou a economia. Houve quem tivesse tentado colar-se à manifestação da geração à rasca com um discurso anti-política. E houve até quem, por ignorância ou por má fé, tenha tentado descredibilizar o protesto de ontem confundindo-o com um apelo que circulava na net pela “demissão de toda a classe política”, e contra o qual obviamente a organização da geração à rasca se colocou. Na verdade, esta manifestação desafia a democracia que temos numa questão essencial: a quem pertence a política? E dá-lhe a resposta mais radical: todos fazemos política e a ela faz-se em todos os lugares. A rua é o lugar privilegiado desta política de todos. Por isso este protesto “apartidário, laico e pacífico” convocou toda a gente e teve tanto sucesso: pessoas que pela primeira vez na vida estiveram numa manifestação, gente que esteve ou está organizada em partidos e em sindicatos (como os próprios organizadores) e que esteve ali enquanto cidadão inteiro que é, pessoas que não se sentem representadas por nenhuma organização ou que se desencantaram com as que existem, activistas dos novos movimentos de precários, estudantes, gente à rasca num país que caminha para o empobrecimento e numa economia dominada pelo medo. A chave de uma mudança profunda no país está provavelmente em pôr em diálogo estas diferentes experiências, formas de estar, modos de organização, expectativas, descontentamentos. Que esta manif tenha provado que existe vida e política para além das organizações políticas existentes não é nenhuma ameaça para quem quer transformar. Pelo contrário, só pode ser uma boa notícia.

A precarização como resposta à precarização?

Esta manif mostra que o processo de precarização do trabalho e da vida é hoje o elemento essencial da questão social no nosso país como na Europa. A crise tem sido pretexto para um ataque sem precedentes ao salário directo e indirecto (com os cortes salariais, a fragilização dos serviços públicos, os juros, a regressão nos direitos sociais) e para generalizar a condição de precariedade – seja por vias dos falsos recibos verdes, seja por via dos estágios, seja pelas empresas de trabalho temporário que já chegam a 600 mil trabalhadores, seja por todas as formas de subemprego e de precariedade assistida pelo Estado (veja-se o caso dos contratos emprego inserção). O El Mundo dizia que a “Revolução Precária” tinha tomado as ruas do país. E foi assim. Aliás, antes mesmo de sair à rua, a manifestação já tinha ganho ao colocar no centro do debate político esta questão. Agora há uma disputa: saber se a solução que queremos é precarizar toda a gente utilizando o desemprego como chantagem (seja facilitando o despedimento por via da diminuição das indemnizações como este governo está a fazer, seja alterando as leis laborais para eternizar os contratos a prazo e flexibilizar as relações de trabalho, como propôs o PSD) ou se é batermo-nos pelo contrato de trabalho e pelo pleno emprego como condição básica da nossa cidadania. A ideia de que o problema do país é ter um mercado laboral rígido é cruelmente desmentida pela existência de quase 2 milhões de pessoas que trabalham e para quem já não existe qualquer contrato de trabalho. E a ideia de que só precarizando se cria emprego, além de recorrer à chantagem, é contrariada pela realidade: na última década, o processo de precarização tem avançado de forma galopante e, ao mesmo tempo, o desemprego não pára de crescer. A precariedade não cria um único posto de trabalho, só aumenta a vulnerabilidade ao desemprego e a desprotecção.

E agora? Que fazer com as nossas dificuldades?

A partir de hoje, nada poderá ser como dantes. Mas o que vai acontecer a seguir?

Vai haver muita gente a elogiar o protesto para o tornar inócuo, defendendo que se trata de um desabafo, de uma catarse que, uma vez feita, permite que as pessoas voltem para casa, que o país volte “ao normal” e que se devolva a palavra aos de sempre. Mas quem ontem esteve na rua, parece-me, não quis só desabafar. Quer mudanças concretas. Mas será que vamos conseguir impô-las?

Primeira dificuldade: ter ideias consistentes que sejam um programa alternativo à precariedade como modo de vida e à economia rasca do desemprego, da austeridade e da recessão. Sem ele, podemos correr o risco de ficarmos pela identificação do problema ou de as soluções de sempre o agravarem ainda mais.

Segunda dificuldade: vencer quem manda, a ditadura dos mercados financeiros que impede as escolhas e que sobredetermina a política. Por toda a Europa, a história repete-se: cortes nos apoios sociais, nos salários, destruição do contrato social para “acalmar os mercados” e pagar os juros especulativos aos bancos, como se não estivesse ao nosso alcance fazer nada. Sem vencermos essa minoria que nos pisa para manter o seu sistema de privilégios, dificilmente se abrirá o campo das alternativas.

Terceira dificuldade: ninguém muda o mundo sozinho. A luta de ontem é a nossa oportunidade de reconstruir o activismo, a militância, o prazer da acção colectiva. De dar força aos movimentos de precários que existem e de lhes somar outros se for caso disso. De criar novos sujeitos na luta social. De começarmos práticas diferentes. De reivindicar as associações, os colectivos, os sindicatos e os partidos como espaços de luta, de partilha de informação, de organização para determinar as escolhas sobre a nossa vida, a economia e a sociedade, fora da falsa alternativa entre o exército centralizado de revolucionários profissionais e o clube de votos restringido à participação eleitoral.

Quarta dificuldade: continuar e fazer pontes. Com a vaga de protestos que aí vem – e em Portugal continua já no dia 19, na manif da CGTP – e com o que se está a passar noutros países que vivem o mesmo que nós. Na Irlanda, centenas de milhares estiveram na rua contra o plano de austeridade e o FMI. A Grécia tem tido sucessivas greves gerais. Na Inglaterra o movimento dos estudantes fez protestos como não havia há muitos anos naquele país, contra as propinas e os empréstimos. Os desemprecários europeus já não estão remetidos ao silêncio. E serão mais fortes se souberem que não estão sozinhos.

Ontem na rua partilhamos o prazer de nos sentirmos vivos. Mas e agora que vamos fazer, nós os que queremos continuar?

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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