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A morte lenta das áreas protegidas

A aprovação de planos de ordenamento de áreas protegidas que viram as costas às suas populações e abrem as portas aos grandes interesses económicos que aí se querem rentabilizar reflecte o falhanço da política de conservação da natureza e da biodiversidade. Os exemplos mais recentes estão na Peneda Gerês e no Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina.

Portugal tem dos patrimónios naturais, paisagísticos e culturais mais ricos a nível europeu. A expressividade do território classificado para protecção é disso revelador, onde se incluem áreas protegidas de elevada diversidade.

A esta classificação deveriam corresponder políticas de serviço público para proteger a natureza e a biodiversidade, nas suas diversas componentes, conseguindo uma relação harmoniosa com as populações que residem nestas áreas e as que aí desenvolvem as suas actividades de sustentação económica, como a pequena agricultura, pastorícia ou pesca.

Reforçar a relação identitária e cultural que as populações têm com os seus territórios, muitas vezes secular, valorizar as actividades tradicionais que são parte integrante destas áreas e contribuem frequentemente para a sua riqueza e diversidade, bem como promover o desenvolvimento das economias locais tirando partido das valias destas áreas a favor das suas populações, deveriam ser eixos importantes desta política.

Mas o que este Ministério do Ambiente tem feito é precisamente o contrário. Não só continua a incapacitar o ICNB (Instituto da Conservação da Natureza e da Biodiversidade), cada vez mais descapitalizado, sem recursos humanos e meios logísticos, afastando-o dos territórios que deveria monitorizar, salvaguardar e valorizar e do contacto de proximidade com as suas populações, como tem aprovado planos de ordenamento que penalizam as gentes das áreas protegidas e as suas actividades, frequentemente sem qualquer justificação de ordem conservacionista, ao mesmo tempo que abrem a porta aos maiores atentados ao património natural para satisfazer os interesses económicos que aí apenas se querem rentabilizar (exemplo, o imobiliário) e em nada beneficiam as comunidades locais.

Vejam-se os exemplos mais recentes da aprovação dos planos de ordenamento do Parque Nacional da Peneda Gerês (PNPG) e do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina (PNSACV).

No PNPG, não só o plano tem várias gralhas e incoerências ao longo dos seus artigos, como introduz um conjunto de restrições e condicionantes que muito dificultam a vida às populações e actividades tradicionais, sem que isso acrescente melhor protecção ambiental ou promova o desenvolvimento sustentável das economias locais. Por exemplo, não se compreende o excesso de pedidos de autorizações e pareceres exigidos, o que parece ser mais uma motivação para aplicar taxas às populações e, assim, financiar um ICNB cada vez mais debilitado e incapaz de realizar as actividades mais simples na área do PNPG, como seja ao nível da vigilância ou da limpeza dos caminhos rurais. Também não se compreende a nova definição introduzida de "residente" que exclui os naturais, muitas pessoas que aí têm terrenos e desenvolvem actividades tradicionais desde há muito, chegando ao absurdo de dividir a população de uma mesma freguesia entre os que tiveram a sorte de ser considerados "residentes" e os outros a quem todos os condicionalismos são aplicados.

Estes são alguns exemplos que mostram como com este plano se perdeu uma oportunidade para o PNPG se conciliar com as populações, as quais têm ao longo dos anos e com as suas actividades tradicionais contribuído para a riqueza ambiental, cultural e patrimonial deste território e se sentem cada vez mais excluídas e desconsideradas.

No PNSACV, o plano aprovado não resolveu as inconsistências das versões anteriores e que foram em consulta pública sujeitas a dezenas de contributos pouco considerados. Este plano, além dos erros aberrantes de cartografia e de zonamento, ao mesmo tempo que coloca todas as condicionantes e restrições sobre a agricultura e pastorícia extensivas, à pesca local e ao turismo da natureza de pequena dimensão, abre espaço aos grandes empreendimentos turísticos e incentiva a agricultura intensiva no perímetro de rega de Mira, sendo absolutamente contraditório nos seus objectivos. É, por isso, um plano que não tem em devida conta a realidade social e territorial do PNSACV, nem as especificidades de algumas comunidades locais, vindo apenas criar uma série de novos condicionalismos que irão afectar negativamente o desenvolvimento local, acelerar o despovoamento, acentuar dramaticamente a crise económica e social já existente e agravar as condições de vida para muitos residentes do PNSACV, nomeadamente dos mais desfavorecidos.

O grande erro deste Ministério é entender as populações não como parceiras fundamentais para a concretização dos objectivos de gestão pública das áreas protegidas, mas sim como um problema a conter. Porque este é um Ministério que tem uma atitude desconfiada das populações, e alimenta esta imagem na comunicação social, fazendo passar a ideia de que os grandes riscos de degradação destas áreas são as pessoas que lá vivem e trabalham, ao mesmo tempo que promove uma atitude desconfiada das populações em relação ao ICNB e ao Ministério: ou seja, está a construir um clima de conflitos constantes (senão mesmo um barril de pólvora) que em nada responde aos interesses da conservação da natureza e da biodiversidade.

É certo que gerir uma área protegida é sempre uma fonte de conflitos, porque há vários interesses em jogo, nem sempre concordantes. É certo que muitos autarcas ainda têm uma visão de desenvolvimento dos seus territórios que passa pela política do betão e dos grandes projectos turísticos ou agrícolas, tendo mesmo sido co-responsáveis, ao longo dos anos, por vários atentados nestas áreas, como é o caso de licenciamentos que nunca deveriam ter sido emitidos ou do alargamento injustificável de perímetros urbanos nos PDM. Visão esta, aliás, concordante com a de um Governo que tem premiado a especulação imobiliária, os grandes resorts turísticos PIN ou as grandes explorações de agricultura intensiva.

Mas também é certo que este Ministério nunca lhes deu uma visão alternativa de desenvolvimento dos seus territórios, tirando vantagem das valias únicas e singulares existentes nas áreas protegidas e diferenciadoras de outros territórios. Por exemplo, os planos de ordenamento nunca têm associadas perspectivas de programação do desenvolvimento das economias locais que valorizem as riquezas naturais, paisagísticas e culturais das áreas protegidas a favor das suas populações, como seja ao nível do turismo da natureza de pequena escala, do alojamento familiar, da visitação guiada, da promoção dos produtos de origem local, da gastronomia, das tradições populares, entre outros.

Perante os conflitos existentes, a escolha deste Ministério tem sido a de penalizar as populações, promover o abandono humano destas áreas e de muitas actividades que delas fazem parte e as enriquecem, privilegiando quantas vezes os interesses exteriores que se querem rentabilizar nestas áreas sem benefício para as comunidades locais e a natureza. A escolha poderia ser outra, a que passasse por construir alianças fortes entre as populações e a gestão pública das áreas protegidas em prol da sua sustentabilidade ambiental, social e económica e contra os interesses do negócio e da especulação.

Com esta política de voltar costas entre as áreas protegidas e as suas populações, falham os próprios objectivos de conservação da natureza e da biodiversidade e compromete-se a prazo a viabilidade das áreas protegidas. Sem sustentabilidade social fica em causa a sustentabilidade ambiental das áreas protegidas e esta é a política do fracasso.

Mas engane-se quem pensa que é falta de visão do Ministério ou apenas uma visão ainda assente num modelo conservacionista estrito que entende natureza e actividades humanas sempre como conflituantes e, por isso, prefere impor condicionantes (mesmo que absurdas) como medidas preventivas.

Esta é uma visão estratégica bem clara e que já assistimos em tantos outros sectores de gestão pública, em que o Estado (central) gere mal, desperdiça recursos e alimenta conflitos com os supostos beneficiários: esta é a estratégica que vai introduzindo a ideia de que os privados fazem melhor (ou pelo menos, pior não fazem) e são mais eficientes. A ideia de que a empresarialização da gestão dos bens públicos, como são os presentes numa área protegida, funciona melhor. A ideia de que é preciso mercadorizar a natureza e a paisagem para justificar a despesa pública, porque mesmo com a gestão privada continua a ser o Estado a pagar o serviço público (como bem conhecemos das várias concessões e parcerias público-privadas que abundam no país). Esta é a estratégia do liberalismo aplicada à natureza, de cedência aos interesses económicos que se querem rentabilizar no melhor do nosso território e ou viver à sombra das rendas pagas pelo Estado.

E esta é uma estratégia totalmente consonante com as ideias de municipalização da gestão das áreas protegidas, como há tantos anos a direita vem defendendo. Porque entregar a gestão aos municípios (o que implica maiores custos para os orçamentos municipais), por melhor que seja a intenção dos autarcas, significa uma menor capacidade de resistir a estes interesses económicos (até porque o financiamento das autarquias continua a estar muito associado à construção ou pode advir a instalação de parques eólicos, barragens e outro tipo de empreendimentos ou actividades), mas também se perde a componente de interesse público, superior ao meramente local, dos valores presentes nas áreas protegidas.

Defender as áreas protegidas como bens públicos significa ter políticas de gestão pública que passem pela construção de uma relação harmoniosa entre os valores ambientais e paisagísticos e as populações que aí vivem e têm o seu trabalho. Por isso, a revisão dos planos de ordenamento do PNPG e do PNSACV é uma exigência cidadã a bem da sustentabilidade social e ambiental destas áreas protegidas.

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, engenheira agrónoma.
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