You are here
Quarenta séculos de história nos contemplam
As revoluções são estratégias da História. São furacões de vida colectiva.
Nós, portugueses, guardamos na memória o espanto dos dias em que a ditadura caiu e a facilidade da força toda que fomos capazes de usar nessa queda.
Há gerações que não conhecem o fascínio de um só dia em que décadas se esvaem e esboroam de tão secas e imprestáveis. O poder que parecia inabalável escoa-se de repente para o esgoto do passado sofredor.
Podemos emprestar memórias, legar testemunhos, certificar as gratas recordações das horas que correram. Mas nós, os que continuamos no mesmo lado, nunca venderíamos os direitos sobre os dias únicos, sobre essa indizível experiência do assombro, sobre essa sensação única de ouvir o estatelar da ditadura na rua, na rua que de repente se fez nossa. Essa panóplia de traquejos e passos para chegar a outro lado é inalienável.
Quando os povos se perguntam sobre a vida, ficam com um olhar pontiagudo e táctil que percorre memórias e inventa e ensaia e treina outras formas de estar e sentir os dias. Muitos, quase todos, perdem o ar de animais feridos, abandonados na maldade da miséria. Perdem o ar de quem deu guarida ao desespero e ao medo, que passam a ser palavras banidas, rançosas, palavras para deitar fora. Comparecem, então, pontualmente, fagulhas de urgência vindas do fogo espevitado das horas. Há beijos no ar dados por lábios em brasa, e também algumas penas provenientes, possivelmente, de uma qualquer asa de anjo que por ali passou, gostou do que viu, e na brincadeira tonta em que dançou, sofreu algum apertão de um bando de gente que se juntou na premência da procura da felicidade.
E depois há luz no ar mesmo que tudo se passe à noite e as estrelas se mostrem avaras. Tudo isto pode parecer romântico mas não é.
Porque o cheiro de o tempo que há-de vir paira como uma grande nuvem sobre os países que saem daquele sufoco e querem finalmente respirar.
Os regimes na antevisão da queda começam então a ter grandes cólicas nas entranhas, convulsões de traidores medrosos, pânicos suados e trémulos, medo, o medo é, aliás, o eterno convidado de todos os processos de deposição.
Porque os depostos pela chama de milhões têm perfeita consciência do que fizeram; sabem das prisões e da tortura; sabem do atarraxar das liberdades; sabem dos roubos, manigâncias, corrupções, clientelas, sabem da miséria que foi a grande pagadora da sua vida tão boa quanto cruel.
Os grandes aliados destas fábricas sinistras de mau viver começam nestas alturas a virar o bico ao prego e a mandar as sólidas solidariedades canalhas para o galheiro. Fazem-se de lucas, assobiam para o ar afectando inocências, desejam felicidades e adeus que se faz tarde.
Já era tarde há muito. Tão tarde, que ainda é cedo para perceber o que virá dali. Mas o que agora ali está, já está.
Foi obra da mão do tempo. O tempo é gente.
Comments
Muito bonito. Um belo e
Muito bonito.
Um belo e inspirador olhar sobre a realidade da vida a transformar-se com as pessoas dentro.
Vale por todos os comentários produzidos em todos os jornais e cadeias de televisão.
Porque é inequivocamente materialista em toda a sua poesia.
Add new comment