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A Prova do Fogo

O governo desceu aos infernos e saiu incólume, passou a prova do fogo. A Europa pasmou, curvou a cabeça, rendeu homenagem.

O governo português vive tempos heróicos: intrépido e tenaz, arrancou aos mercados a colocação das dívidas do Estado a dez anos a uma taxa de juro de 6,716%. O governo desceu aos infernos e saiu incólume, passou a prova do fogo. A Europa pasmou, curvou a cabeça, rendeu homenagem. Os nomes do Primeiro-Ministro em exercício, do seu Ministro das Finanças, e de todos os restantes membros do gabinete, serão gravados a letras de ouro na placa de bronze que registará para a eternidade os nomes imorredouros da História do nosso país.

Aí, o lugar deste feito é evidente, nem se pode pensar numa outra hipótese: será narrado imediatamente a seguir ao nome e aos feitos de D. Afonso Henriques, o fundador do Estado, dado que o leilão consumado equivale, no fundo, a uma verdadeira refundação do Estado, ameaçado de morte, agora não à nascença por D. Teresa, com o auxílio de D. Fernão Peres de Trava, mas sim na maturidade, por D. Ângela, com o auxílio de D. Nicolau Sarkozy de França. O anacronismo existente na ordem temporal desaparece em favor da simultaneidade decorrente da igualdade de valor dos dois acontecimentos, e portanto, aquilo que na ordem do tempo ocupa lugares muitos distintos, na memória dos homens ficará guardado no mesmo lugar e à mesma altura. Só assim será feita justiça ao valor do acto agora praticado, nada mais e nada menos do que a salvação de Portugal.

Mas claro que não faltarão as más-línguas. Há sempre os detractores das grandes obras, uma gente ingrata, capaz de ver defeitos nos actos mais sublimes. E também é claro que, neste alto momento da História, haverá quem fatalmente diga: “Mas onde está o grande acto do governo? O Primeiro-Ministro ou o Ministro das Finanças vão pagar do seu bolso os juros negociados? É que não é muito difícil negociar dívidas que a nós, pessoalmente, não nos afectam e que os outros é que vão pagar! Sendo ainda certo que não está de forma alguma provado, que os que vão pagar os juros tenham sido os mais beneficiados com os créditos que deram origem à dívida. Mais, muitos dos grandes beneficiados com os créditos não vão, tão pouco, contribuir para o pagamento destes juros, desde logo porque nem sequer pagam impostos ou pagam impostos desproporcionalmente inferiores aos seus rendimentos. E além disso, afinal onde é que está a dificuldade de perguntar aos especuladores, nacionais e internacionais, quanto é que querem receber do povo português para ficarem com o crédito mais algum tempo?”

Ainda para mais, esta gente ingrata é a mesma que anda a beliscar a reputação do Presidente da República em exercício, fazendo perguntas sobre as suas relações com algumas pessoas ligadas aos negócios de uma determinada instituição bancária, o que é completamente descabido, dadas as características da instituição em causa.

Como é sabido, trata-se de uma instituição modelar, que foi um motivo de orgulho para a nação, um espelho para a juventude, que tanto contribuiu para o bem-estar do povo português, cujo presidente apenas por manifesto, clamoroso e grosseiro erro judiciário está a contas com os tribunais. Por isso, bem merece esta instituição que o povo português lhe demonstre a sua solidariedade, oferecendo-lhe agradecido, e em retribuição dos serviços prestados, a modesta quantia de quatro mil e seiscentos milhões de euros, retirados aos seus recursos próprios.

E se mais for preciso mais se dará, que o povo não esquece os seus benfeitores e responderá “presente”, sempre e até ao montante que for necessário. Nem que para tal tenha o povo que passar fome, suportar doenças sem se poder tratar, ou ver os subsídios de desemprego reduzidos ou retirados. Nada disso interessa! Estamos perante altíssimas questões de honra, e como manda a honra nos educados, exclusivos e eticamente exigentes meios da alta-finança contemporânea, quando há prejuízos...os outros que os paguem!

É este também o elevado princípio moral que guia a acção do governo. Seguindo o exemplo da alta-finança contemporânea, fazer o povo pagar os prejuízos que não causou. E assim, desta forma, o governo português pode orgulhosamente dizer, a quem está à espera de ouvir isso mesmo: “Iremos heroicamente até ao fim, consumaremos a destruição da nossa economia, entregaremos aos especuladores dos mercados o que estes quiserem, nem que o povo português tenha para tal que ficar, até à última família, estendido na penúria deste campo de batalha. E podem estar descansados, que há para todos, para os especuladores dos mercados e para os exploradores dos Fundos de Estabilização e do FMI. Apenas se têm que colocar na fila de espera. Jamais, jamais, mudaremos a nossa, que é a vossa, política! O povo pagará tudo, pois é precisamente para isso que ele lá está, é para isso que sempre lá esteve, é essa a sua razão de ser e não qualquer outra”.

Dizem que houve por aqui uma Revolução há 36, quase 37 anos, cuja ideia seria arrancar o povo português à pobreza das suas condições de vida durante o Estado Novo. Dizem, porque já quase não se nota.

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário em Tübingen, Alemanha
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