You are here

Que futuro para a Política Agrícola Comum?

Em discussão está não só qual o envelope financeiro que lhe vai caber, mas sobretudo as mudanças de orientação e das medidas em causa.

Está em processo uma nova reforma da Política Agrícola Comum (PAC) para a ajustar ao novo período plurianual de financiamento pós-2013. Em discussão está não só qual o envelope financeiro que lhe vai caber, mas sobretudo, e esse é o debate mais importante, as mudanças de orientação e das medidas em causa.

O documento apresentado pela Comissão Europeia, em Novembro, sobre o horizonte da PAC indica alguns desses caminhos.

Recorde-se que a PAC é a política comunitária mais antiga e continua a ser uma das mais dispendiosas. O seu peso no orçamento europeu é actualmente de 41% (em 2013 será de 39,3%), o que é ainda significativo, mesmo face aos 75% de 1985, sobretudo num momento em que a UE atravessa uma situação de crise financeira, económica e social, onde as respostas comunitárias não existem ou são insuficientes.

Deste modo, qualquer que seja o envelope financeiro em causa, ele deve responder a objectivos bem claros e ser gerido com rigor e transparência para ter legitimidade perante os contribuintes.

Não está em causa a necessidade de uma política comunitária para esta área, tendo em conta a especificidade do sector agrícola e dos territórios rurais. Não nos esqueçamos que a PAC integrou no seu âmbito as políticas de desenvolvimento rural desde a Agenda 2000: desde então a PAC está dividida entre o 1º pilar com as políticas de preços e compensação do rendimento dos agricultores e o 2º pilar com o desenvolvimento rural.

A especificidade da agricultura deriva do facto de produzir bens essenciais como alimentos e matérias-primas, estando dependente dos ciclos naturais e aleatoriedades climáticas, o que lhe coloca particularidades ao nível da formação de preços e funcionamento dos mercados, para além de assumir importância para o emprego rural e a gestão dos solos e paisagens.

As zonas rurais representam 90% do território e 56% da população da UE, onde o sector agrícola tem vindo a declinar em termos do seu contributo para a economia, emprego e ocupação do espaço rural. Nestas zonas, o sector primário apenas representa 9% do emprego e 3% do VAB. Nas zonas onde há menos população, as mais frágeis, 82% do emprego e 35% do VAB derivam de sectores não agrícolas, sendo que aí 35% dos agricultores tem outras fontes de rendimento que não a agricultura (pluriactividade). Ou seja, o dinamismo das áreas rurais está cada vez menos associado ao sector agrícola e esta é também uma realidade que tem de ser tida em conta.

Uma reforma da PAC é absolutamente necessária perante as suas debilidades actuais e os desafios que temos pela frente, desde o aumento dos preços dos alimentos às alterações climáticas que vão alterar substancialmente os riscos naturais e as condições de produção.

Um problema de distribuição

Em primeiro lugar, é necessário corrigir as injustiças na distribuição dos apoios agrícolas da PAC, tanto entre Estados-Membros como dentro de cada Estado Membro.

A Alemanha e França continuam a receber a grande fatia dos apoios, o que coloca desigualdades entre agricultores do "centro" e agricultores da "periferia" sem qualquer justificação económica e social.

Dentro de cada Estado-Membro a situação não é melhor. Veja-se o caso português, onde 8% dos agricultores recebe 76% das ajudas directas) e cerca de 50% da Superfície Agrícola Utilizada (SAU), mesmo a que tem produção, é gerida para maximizar subsídios, numa gestão rentista da terra. Como diz a OCDE num relatório de 2006, "em geral, a dimensão das explorações agrícolas e a actividade principal determinam o nível do apoio financeiro das ajudas agrícolas", concluindo que "o apoio agrícola tende a estar concentrado nas regiões mais ricas, onde as explorações são maiores e mais produtivas".

Ou seja, com esta PAC, países como Portugal não obtiveram uma maior competitividade da agricultura sem o recurso a subsídios (o número de explorações viáveis e competitivas diminuiu), acentuou-se o desemprego agrícola, o desaparecimento de explorações (112 mil nos últimos 10 anos), o abandono rural ou o envelhecimento populacional perante a falta de alternativas para a fixação de jovens ou atractividade de novos habitantes.

O documento da CE incide muito na questão das ajudas directas, onde refere querer fazer uma mudança muito profunda. As ajudas directas foram criadas com a Reforma de 1992 para compensar os rendimentos agrícolas devido à retirada dos preços institucionais, sujeitando os bens agrícolas aos preços de mercado mais baixos, tendo a Reforma de 2003 desacoplado a atribuição destas ajudas da produção, associando-as ao histórico de produção. Este é um dos principais factores de manutenção da desigualdade na distribuição dos apoios entre agricultores desde o início da PAC, beneficiando quem menos precisa e deixando de fora quem está em dificuldades.

A CE aponta para as ajudas directas passarem a ser um pagamento de base a todos os agricultores "activos" de forma uniforme dentro de um Estado Membro ou região por associação a superfícies elegíveis.

Esta solução responde aparentemente a algumas preocupações, como a dos direitos ligados ao histórico, atacando a reprodução das injustiças anteriores e deixando de pagar a quem não produz, mas pouco esclarece. Por exemplo, não explica o que se entende por agricultor "activo", alvo já de divisão nos países europeus, como é o caso de uns defenderem que seja quem desempenha a actividade a tempo inteiro (mais presentes na Europa do Norte), deixando de fora os pluriactivos (mais presentes na Europa do Sul). Também não explica qual a superfície elegível, se está associada à área, à ocupação cultural ou outra.

Mas sobretudo, será que se justifica um pagamento de base uniforme para todos os agricultores dentro de um Estado-Membro ou região, não considerando diferenças regionais, de competitividade, de produtividade? Qual a legitimidade de um agricultor viável e competitivo receber um subsídio? Ou de uma exploração que diversificou a sua actividade e também tira rendimentos importantes do agro-turismo? E como se combate por esta via quem tem uma gestão rentista da terra e da produção apenas para receber subsídios? Pagar com o único critério de se ser (ou parecer ser) agricultor é bastante fraco. Esse pagamento deveria estar associado a objectivos e critérios claros, como o factor trabalho, níveis de produção a atingir, ocupações culturais a privilegiar, definindo objectivos sociais e ambientais a concretizar bem explícitos e mensuráveis.

Sobre a proposta de as medidas agro-ambientais passarem, parcialmente, do 2º pilar para o 1º pilar tem a vantagem do financiamento deixar de ser co-financiado, mas as questões colocadas anteriormente mantêm-se. Aliás, deveria ponderar-se a aplicação de regras ambientais de base aplicáveis a toda a actividade agrícola, não dependentes do pagamento de apoios para o seu cumprimento (condicionalidade ou extracontratuais), pois não é admissível que uma exploração que não receba subsídios possa poluir, até quando se fala na possibilidade de colocar restrições aos produtos extra-comunitários com base no argumento de que não cumprem as mesmas normas ambientais da UE.

Um problema de mercado

Mas mais do que um problema de distribuição dos apoios, o sector e os agricultores europeus defrontam-se com um problema de mercado, sobre o qual a CE aponta pouca vontade de intervir. Um mercado liberalizado sem regras que torna o sector vulnerável e irá implicar um peso crescente das medidas para a compensação do rendimento dos agricultores, ou seja, do orçamento comunitário, e dificulta a concretização de objectivos sociais, territoriais e ambientais de qualquer política agrícola e de desenvolvimento rural.

A vulnerabilidade do sector agrícola europeu é conhecida: crescente exposição aos mercados financeiros, onde se especula com os alimentos e os preços tornam-se cada vez mais voláteis; maior dependência de factores de produção como os combustíveis, rações, sementes, sujeitos às flutuações do mercado ou nas mãos de monopólios empresariais; orientação para a exportação, com crescente dependência dos mercados de importação e oscilação dos preços internacionais. Note-se que a UE tornou-se um importador líquido de produtos agrícolas, com um montante anual superior a 87,6 mil milhões de euros, e tem um défice comercial crescente.

Perante este contexto, a UE deve voltar a instituir o princípio da preferência comunitária, orientando-se para a substituição das importações e dando relevância às redes locais de comercialização, aproximando produtores de consumidores, equilibrando as capacidades de produção e distribuição entre Estados Membros. Nesta perspectiva, manter a intenção de abandonar o sistema de quotas leiteiras em 2015 sem qualquer outro instrumento alternativo é um erro, pois isso irá significar o aniquilamento da produção de leite e agro-indústria associada em várias regiões ou países, como é o caso de Portugal.

Diz o documento da CE que quer utilizar os mecanismos de intervenção no mercado apenas em períodos de crise de preços e potenciais perturbações no mercado. Nestas alturas é fundamental intervir com medidas excepcionais. Neste campo é fundamental a UE reforçar desde já as suas reservas estratégicas de bens alimentares, as quais devem ser publicamente controladas, como mecanismo de salvaguarda e intervenção em período de crises: estas estavam nos mínimos quando rebentou a crise alimentar de 2007/2008. Mas mais do que pensar nas excepções, que ameaçam tornar-se cada vez mais frequentes, é preciso encontrar mecanismos de intervenção que tornem o sector e os agricultores menos vulneráveis ao mercado, prevenindo a ocorrência desses mesmos choques. E isso não é compatível com um mercado sem regras, inserido nos critérios da Organização Mundial de Comércio ou sujeito a produtos financeiros derivados ou ao mercado de futuros.

Também diz o documento da CE que é preciso intervir para inverter a tendência constante de diminuição da parte dos produtores do valor acrescentado gerado pela cadeia alimentar: em 2000 era de 29%, em 2005 de 24%. Mas quais as medidas concretas, sobretudo perante o excessivo peso negocial dos grandes retalhistas, nada é apontado. Possivelmente mais do mesmo, ou seja, nada muda.

Um problema de legitimidade

Este processo de reforma torna mais evidente que nunca como as questões ambientais e do desenvolvimento rural foram introduzidas na PAC mais como uma "necessidade de encaixar o apoio ao sector na 'caixa verde' da OMC e tornar aceitáveis ao contribuinte o apoio à agricultura" (Ferrer e Kaditi, 2007), do que como uma reformulação do modelo de desenvolvimento agrícola e rural comunitário. Esta reforma segue "a progressiva tendência, apreciável nas últimas reformas, a esbater as barreiras entre pilares para legitimar a total protecção que recebe a agricultura" (Arnalte, 2005).

O documento da CE apresenta um esvaziamento significativo do 2º Pilar (Proder) e dos seus objectivos de desenvolvimento rural. Volta-se a assumir uma orientação puramente sectorial, a qual assenta sobretudo nas preocupações de modernização das explorações agrícolas, abandonando-se qualquer perspectiva territorial introduzida anteriormente.

Este documento esquece por completo a importância de diversificação das actividades económicas em meio rural e nas explorações agrícolas, ignorando as mudanças ocorridas nas economias rurais e as novas oportunidades de desenvolvimento destas áreas.

Quando a agricultura já não é o sector predominante em termos da economia e emprego rurais nem da ocupação do espaço rural, ou quando grande parte dos agricultores o é a tempo parcial e em regime de pluriactividade, percebe-se a importância da diversificação das economias rurais, mesmo para a manutenção das pequenas explorações e actividade agrícola familiar.

Quando o espaço rural é hoje crescentemente procurado por actividades territoriais de turismo, gastronomia entretenimento, lazer, contacto com a natureza e paisagem, residências secundárias, ..., ligadas à valorização dos recursos e patrimónios locais, percebe-se a importância de criar condições para o seu desenvolvimento com participação das populações locais, podendo mesmo constituir um bom suporte à dinamização das pequenas explorações como complemento dos seus rendimentos agrícolas.

Esquece também que as zonas rurais precisam de resolver problemas de défice de infra-estruturas e serviços locais que respondam às necessidades das populações e as tornem atraentes para a fixação de novos residentes e contrariem o êxodo rural.

Nada disto aparece no documento da CE, o que é mesmo um retrocesso face à última reforma da PAC de 2005. Como refere o documento do grupo de peritos português encarregue de dar opinião sobre esta reforma, seria oportuno, "face à especificidade e dimensão dos desafios que enfrentam as zonas rurais, especialmente as de menor densidade e mais remotas, a criação de uma política comunitária de desenvolvimento rural com estratégica própria e programação e gestão específicas, territorialmente dirigidas, integradas e coordenadas, cujo financiamento seria principalmente garantido em conjunto por vários fundos sectoriais e pelos Fundos Estruturais que operam no âmbito da política regional e de coesão, a que se juntaria um contributo relevante do FEADER [fundo financeiro para o Proder]”. Infelizmente, nem estratégia própria, nem coordenação de políticas e fundos de financiamento, nem programação adequada na próxima PAC para o desenvolvimento rural.

Este documento esquece também por completo a abordagem Leader para o desenvolvimento de territórios rurais com base em parcerias locais construídas da base para o topo.

É certo que os documentos europeus saídos até agora são preliminares e muito abertos nos caminhos apontados para a reforma da PAC. Uma longa discussão entre Estados-Membros, em que todos querem ganhar e não ceder, em que os lóbis agrícolas fortes actuam e não se ouvem as vozes das populações rurais, ainda será feita até sair o documento final. As suas propostas serão, certamente, totalmente diferentes das que conhecemos agora.

Mas quando o que conhecemos até ao momento não consegue sequer ter o discurso bonito para agradar a todos e tem tantas omissões e esquecimentos ou persiste em não reflectir sobre evidências, como todos os documentos preliminares das reformas prévias tinham ou lá iam conseguindo, as preocupações crescem bastante...

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, engenheira agrónoma.
(...)