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Perspectivas da economia mundial em 2011

O triunfo da austeridade nos EUA e na Europa, sem dúvida alguma, eliminará essas duas áreas como motores para a recuperação económica global. Mas a Ásia encontra-se num caminho diferente? Pode ela suportar, como Sísifo, o peso do crescimento global?
Protesto contra a Cimeira do G20, realizada em Seul em Novembro de 2010

Em contraste com as suas previsões optimistas, no final de 2009, de uma recuperação sustentada, o humor dominante nos círculos económicos liberais no final de 2010 é sombrio, para não dizer apocalíptico. Os falcões fiscais ganharam a batalha política nos EUA e na Europa, para alarme dos defensores do gasto público, como o prémio Nobel Paul Krugman e o colunista do Financial Times, Martin Wolf, que consideram as restrições orçamentais como a receita mais segura para matar a incipiente recuperação nas economias centrais.

Mas ainda que os EUA e a Europa pareçam presos a uma crise mais profunda no curto prazo e à estagnação no longo prazo, alguns analistas falam de um “desacoplamento” do Leste Asiático e de outras áreas em desenvolvimento em relação às economias ocidentais. Essa tendência iniciou-se em 2009 na esteira do programa de estímulos massivos da China, que não só reestabeleceu o crescimento chinês de dois dígitos, como tirou da recessão e levou à recuperação várias economias vizinhas, desde Singapura até à Coreia do Sul. Em 2010, a produção industrial asiática recuperou a sua tendência histórica, “quase como se a Grande Recessão nunca tivesse ocorrido”, segundo The Economist.

A Ásia está seguindo realmente um caminho separado da Europa e dos Estados Unidos? Estamos realmente a assistir a um desacoplamento?

O triunfo da austeridade

Nas economias centrais, a indignação com os excessos das instituições financeiras que precipitaram a crise económica deram lugar à preocupação com os défices públicos massivos em que os governos incorreram para poder estabilizar o sistema financeiro, frear o colapso da economia real e enfrentar o desemprego. Nos Estados Unidos, o défice situa-se acima de 9% do PIB. Não é um défice descontrolado, mas a direita norte-americana conseguiu a façanha de que o medo do défice e da dívida federal pesasse mais no espírito da opinião pública do que o medo do aprofundamento da estagnação e do aumento do desemprego. Na Inglaterra e nos EUA, os conservadores fiscais conseguiram um mandato eleitoral claro em 2010, enquanto que, na Europa Continental, uma Alemanha retornando ao crescimento anunciou ao resto da eurozona que não continuaria a subsidiar os défices dos membros mais fracos das economias meridionais ou periféricas, como Grécia, Irlanda, Espanha e Portugal.

Nos EUA, a lógica da razão deu lugar à lógica da ideologia. O impecável argumento dos Democratas de que o gasto público em estímulos à economia era necessário para salvar e criar postos de trabalho não conseguiu resistir ao assalto da tórrida mensagem Republicana, segundo a qual um maior estímulo público, acrescido dos 787 mil milhões de dólares do pacote de Obama em 2009, significaria um passo mais na direcção do “socialismo” e da “perda da liberdade individual”. Na Europa, os keynesianos argumentaram que o afrouxamento fiscal não só ajudaria a Irlanda e as economias meridionais com problemas, como também a poderosa maquinaria económica alemã, pois essas economias absorvem as exportações da Alemanha. Do mesmo modo que nos EUA, os argumentos racionais sucumbiram às imagens sensacionalistas, neste caso ao retrato mediático de uns esforçados alemães subsidiando hedonistas mediterrânicos e esbanjadores irlandeses. A contragosto, a Alemanha aprovou pacotes de resgate para a Grécia e a Irlanda, mas só sob a condição de que gregos e irlandeses fossem submetidos a selvagens programas de austeridade, descritos por nada menos que dois ex-ministros alemães no Financial Times como medidas anti-sociais “sem precedente na história moderna”.

O desacoplamento ressuscitado

O triunfo da austeridade nos EUA e na Europa, sem dúvida alguma, eliminará essas duas áreas como motores para a recuperação económica global. Mas a Ásia encontra-se num caminho diferente? Pode ela suportar, como Sísifo, o peso do crescimento global?

A ideia de que o futuro económico da Ásia se desacoplou do das economias do centro não é nova. Esteve na moda antes da crise financeira derrubar a economia norte-americana em 2007-2008. Mas revelou-se ilusória quando a recessão atingiu os EUA, país do qual a China e outras economias do Leste Asiático dependiam para absorver os seus excedentes. Entre fins de 2008 e início de 2009, a Ásia foi atingida repentina e drasticamente. São desse período as imagens televisivas de milhões de trabalhadores chineses migrantes abandonando as zonas económicas costeiras e regressando ao campo.

Para enfrentar a contracção económica, a China, tomada de pânico, lançou o que Charles Dumas, autor de Globalisation Fractures, caracterizou como um “violento estímulo interior” de 4 mil milhões de yuanes (580 mil milhões de dólares). Isso significava cerca de 13% do PIB em 2008 e constituiu “provavelmente o maior programa da história deste tipo, incluídos os anos de guerras”. O estímulo não só restituiu o crescimento de dois dígitos; também transmitiu às economias do Leste asiático um impulso recuperador, enquanto a Europa e os EUA caíam na estagnação. Essa notável inversão é o que levou ao renascimento da ideia do desacoplamento.

O governante Partido Comunista da China reforçou essa ideia ao sustentar que se produziu uma mudança de política que prioriza o consumo interno em relação ao consumo orientado para a exportação. Mas se observamos o quadro com mais atenção, vemos que isso é mais retórica que qualquer outra coisa. Com efeito, o crescimento orientado para a exportação continua a ser o eixo estratégico, algo que é sublinhado pela continua negativa chinesa de valorizar o yuan, uma política destinada a manter competitivas as suas exportações. A fase de incentivo do consumo interno parece ter acabado e a China fala agora, como observa Dumas, “em processo de mudança massivo, desde o estímulo benéfico da procura interna até algo muito parecido ao modelo de 2005-2007: crescimento orientado para a exportação com um pouco de reaquecimento”.

Não só analistas ocidentais como Dumas têm chamado a atenção sobre esse regresso ao crescimento orientado para a exportação. Yu Yongding, um influente tecnocrata que trabalhou como membro do comité monetário do Banco Central chinês confirma que, de facto, se voltou à prática económica habitual: “Na China, com ratios comércio/PIB e exportações/PIB que excedem já, respectivamente, 60% e 30%, a economia não pode continuar a depender da procura externa para sustentar o crescimento. Desgraçadamente, com um enorme sector exportador que emprega milhões e milhões de trabalhadores, essa dependência tornou-se estrutural. Isso significa que reduzir a dependência e o excedente comercial da China passa mais por saturar do que por ajustar a política macroeconómica”.

O regresso ao crescimento orientado para a exportação não é simplesmente um assunto de dependência estrutural. Tem a ver com um conjunto de interesses procedentes do período da reforma, interesses que, como diz Yu, “se transformaram em interesses corporativos que lutam duramente para proteger o que têm”. O lóbi exportador, que junta empresários privados, altos executivos de empresas públicas, investidores estrangeiros e tecnocratas de Estado, é o lóbi mais poderoso de Beijing neste momento. Se a justificação dada para o estímulo público foi derrotada pela ideologia nos EUA, na China a argumentação igualmente racional em defesa do crescimento centrado no mercado interno foi aniquilada por interesses materiais sectoriais.

Deflação global

O que os analistas como Dumas chamam ao regresso da China ao tipo de crescimento orientado para a exportação chocará com os esforços dos EUA e da Europa para impulsionar a recuperação mediante um crescimento orientado para a exportação simultaneamente com a adopção de barreiras à entrada de importações asiáticas. O resultado mais provável da promoção competitiva dessa volátil mistura de estímulo à exportação e protecção interna por parte dos três sectores que encabeçam a economia mundial numa época de comércio mundial relativamente menos próspera não será expansão global, mas sim deflação global. Como escreveu Jeffrey Garten, antigo subsecretário de Comércio no governo Bill Clinton:

Ainda que se tenha prestado muita atenção à procura de consumo e industrial nos EUA e na China, as políticas deflacionárias que envolvem a União Europeia, a maior unidade económica do mundo, poderiam afectar negativamente o crescimento económico global... As dificuldades de levar a Europa a redobrar o seu desempenho nas exportações ao mesmo tempo que EUA, Ásia e América Latina estão a posicionar as suas economias para vender mais em todo o mundo, não poderia senão exacerbar as tensões, já suficientemente altas, nos mercados de divisas. Poderia levar a um ressurgimento das políticas industriais patrocinadas pelos estados, cujo crescimento já pode ser observado em todas as partes. Tomados em conjunto, todos esses factores poderiam propagar o incêndio proteccionista tão temido por todos”.

A crise da Velha Ordem

O que nos aguarda em 2011 e nos próximos anos, adverte Garten, são momentos de “turbulência excepcional, à medida que o ocaso da ordem económica global tal como a conhecemos avança de modo caótico e, talvez, destrutivamente”. Garten destila um pessimismo que está a tomar conta cada vez mais de boa parte da elite global que outrora anunciava a boa nova da globalização e que agora a vê desintegrar-se literalmente diante dos seus próprios olhos. E esta ansiedade fin de siècle não é monopólio dos ocidentais. Ela é compartilhada pelo influente tecnocrata chinês Yu Yongding, que sustenta que o “impulso do crescimento chinês praticamente esgotou o seu potencial”. A China, economia que conseguiu cavalgar a onda globalizadora com maior êxito, “chegou a uma disjuntiva crucial: se não implementar penosíssimos ajustes estruturais, poderá perder subitamente a força do seu crescimento económico. O rápido crescimento económico foi obtido a um custo extremamente alto. Só as próximas gerações conhecerão o verdadeiro preço a ser pago”.

A esquerda na presente conjuntura

Diferentemente das medrosas apreensões de figuras do establishment como Garten e Yu, muitas pessoas da esquerda vêem a turbulência e o conflito como a necessária companhia do nascimento de uma nova ordem. E, com efeito, os trabalhadores estão a mobilizar-se na China e já obtiveram aumentos salariais significativos com greves organizadas em empresas estrangeiras ao longo de 2010. Os protestos também eclodiram na Irlanda, Grécia, França, Portugal e Grã-Bretanha. Mas, ao contrário da China, na Europa os trabalhadores estão a marchar para manter direitos perdidos. O certo é que, nem na China, nem no Ocidente, nem em parte alguma são os resistentes portadores de uma visão alternativa à ordem capitalista global. Pelo menos ainda não.

Artigo publicado em focusweb.org a 30 de Dezembro de 2010, traduzido por Sin Permiso e para português por Marco Aurélio Weissheimerpara Carta Maior

Sobre o/a autor(a)

Professor de Sociologia e administração na Universidade das Filipinas. Diretor fundador e atual copresidente do Conselho de Administração da Focus on the Global South, colunista de Foreign Policy in Focus
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