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EUA: Quando os mortos-vivos vencem

Os fundamentalistas do mercado erraram sobre tudo. Mas, ainda assim, dominam a cena política mais completamente que nunca. Como é que isto aconteceu? Por Paul Krugman
Estamos ainda – talvez mais que nunca – a ser governados pela “economia dos mortos-vivos”

Quando historiadores olharem de volta para o período 2008-10, o que mais vai intrigá-los, acredito, é o estranho triunfo de ideias falidas. Os fundamentalistas do mercado erraram sobre tudo — ainda assim eles dominam a cena política mais completamente que nunca.

Como é que isto aconteceu? Como, depois que bancos descontrolados colocaram a economia de joelhos, acabamos [nos EUA] com Ron Paul, que diz “não penso que precisemos de regulamentação”, assumindo um comitê-chave do Congresso que vigia o Banco Central? Como, depois das experiências dos governos Clinton e Bush — o primeiro aumentou impostos e presidiu sobre uma espectacular criação de empregos; o segundo cortou impostos e presidiu sobre um crescimento anémico mesmo antes da crise –, acabamos com um acordo bipartidário para cortar os impostos ainda mais?

A resposta da direita é que os fracassos económicos do governo Obama mostram que as políticas de “grande governo” não funcionam. Mas a resposta a eles deveria ser: que política de grande governo?

Pois o facto é que o estímulo económico de Obama — que em si era quase 40% baseado em cortes de impostos — foi muito cauteloso para dar uma guinada na economia. E isso não é uma crítica feita em retrospectiva: muitos economistas, dentre os quais me incluo, alertaram desde o começo que o plano era grosseiramente inadequado. Coloquem assim: uma política sob a qual os empregos públicos foram reduzidos e na qual os gastos do governo em bens e serviços cresceram mais devagar que durante os anos Bush não constitui exactamente um teste de economia keynesiana.

Bem, talvez não tenha sido possível ao presidente Obama conseguir mais diante do cepticismo do Congresso em relação ao seu governo. Mas mesmo que fosse verdade, apenas demonstra o contínuo controle de uma doutrina falida sobre a nossa política.

Também vale a pena dizer que tudo o que a direita disse sobre os motivos do fracasso da Obamanomics estava errado. Por dois anos temos sido advertidos de que os empréstimos do governo fariam disparar os juros; na verdade, as taxas flutuaram com o optimismo ou pessimismo sobre a recuperação económica, mas mantiveram-se consistentemente baixas se comparadas a padrões históricos. Por dois anos fomos alertados de que a inflação e até mesmo a hiperinflação estava a caminho; em vez disso, a deflação continuou, com a inflação básica – que exclui a volatilidade dos preços de alimentos e energia – sendo a menor do último meio século.

Os fundamentalistas do livre mercado cometeram tantos erros sobre os Estados Unidos quanto sobre eventos no exterior — e sofreram poucas consequências disso. “A Irlanda”, declarou George Osborne em 2006, “é um brilhante exemplo da arte do possível na formulação económica de longo prazo”. Epa! Agora o sr. Osborne é a maior autoridade económica britânica.

E nessa nova posição ele está a copiar as políticas de austeridade implementadas pela Irlanda depois de a bolha local ter estourado. Aliás, conservadores dos dois lados do Atlântico passaram boa parte do ano passado saudando a austeridade irlandesa como um sucesso absoluto. “A política irlandesa funcionou em 1987-89 e está a dar certo agora”, declarou Alan Reynolds do Cato Institute em Junho passado. Epa!, de novo.

Mas tais fracassos não parecem importar. Pedido emprestado o título de um livro recente do economista australiano John Quiggin sobre doutrinas que a crise deveria ter matado mas não matou, estamos ainda – talvez mais que nunca – a ser governados pela “economia dos mortos-vivos”. Porquê?

Parte da resposta, certamente, é que as pessoas que deveriam ter tentado matar as ideias mortas-vivas tentaram, em vez disso, fazer um acordo com elas. E isso é especialmente verdadeiro no que se refere ao presidente [Obama], mas não apenas a ele.

As pessoas tendem a esquecer que Ronald Reagan muitas vezes cedeu em questões políticas de substância – nomeadamente, aprovou múltiplos aumentos de impostos. Mas ele nunca foi mole com ideias, nunca recuou da postura de que a sua posição ideológica estava correta e de que a dos adversários estava errada.

O presidente Obama, por contraste, tem consistentemente tentado fazer acordo com o outro lado, dando cobertura aos mitos da direita. Felicitou Reagan por restaurar o dinamismo dos Estados Unidos (quando foi a última vez que você ouviu um republicano elogiando Roosevelt?), adoptou a retórica da oposição sobre a necessidade do governo de apertar o cinto mesmo diante da recessão e ofereceu congelamento simbólico de gastos e salários federais.

Nada disso fez com que a direita deixasse de denunciá-lo como socialista. Mas essa postura ajudou a dar poder a ideias más, de forma que elas podem causar danos imediatos. Neste momento, o sr. Obama está a saudar o acordo para redução de impostos [dos ricos] como uma forma de estimular a economia – mas os republicanos já estão a falar em cortes de gastos do governo que acabariam com qualquer estímulo resultante do acordo. E como é que ele pode enfrentar os republicanos se abraça ele mesmo a retórica de apertar o cinto?

Sim, a política é a arte do possível. Todos entendemos a necessidade de fazer acordos com inimigos políticos. Mas uma coisa é fazer acordo para adiantar os objectivos; outra é abrir as portas para as ideias dos mortos-vivos. Quando se faz esta concessão, os mortos-vivos acabam comendo o seu cérebro – e possivelmente também a sua economia.

Texto em português publicado no Vi o Mundo (Artigo publicado originalmente no The New York Times)

Retirado de Carta Maior

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