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A estrela é o Qatar – e Washington está preocupada

O Qatar é pequeno em território, mas é um gigante muito, muito grande, na região. Telegramas dos EUA, divulgados pela Wikileaks, dizem que o país “financia o terrorismo”, mas a Casa Branca não deve meter-se com o seu Emir.
O actual Emir, Sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani

Apesar dos telegramas-relatórios recentemente divulgados, através de fuga de informação, sobre o Qatar e o que lá se lê, que o país seria das principais fontes de financiamento para “os terroristas”, melhor faria Washington se não se metesse com o Emir, Sheikh Hamad bin Khalifa al-Thani.

O Emir do Qatar é o único líder mundial que algum dia saiu furioso, apenas sete segundos depois de ter entrado no gabinete de um vice-presidente dos EUA. E é dono da rede de televisão Al-Jazira – pertence, sim, de fato, ao Emir do Qatar –, que revolucionou todo o jornalismo no Médio Oriente. O Qatar é pequeno em território, mas é um gigante muito, muito grande, na região.

O Emir é homem de inteligência aguda e senso de humor ainda mais agudo. É conhecido por ter dito a um visitante que, se despejasse os norte-americanos da imensa base aérea em Doha – a maior instalação militar desse tipo, dos EUA, em todo o Oriente Médio –, “os meus irmãos árabes invadiriam o Qatar.”

Perguntado o que faria se esse comentário fosse noticiado, deu uma gargalhada e disse que negaria tudo. Imagino que fará exactamente isso sobre a última notícia divulgada pela WikiLeaks, que sugere que a sua rede de televisão “comprovou ser instrumento útil para os seus proprietários políticos”, garantindo “substancial fonte de alavancagem para o Qatar, da qual o Qatar não abrirá mão”. Duvido que haja, no mundo, comentário que preocupe menos o Emir!

A Al-Jazira, é claro, está a gostar muito de assistir aos embaraços de Washington, e não se cansa de distribuir os telegramas escapados nos dois canais que opera – um em árabe, outro em inglês, ao mesmo tempo em que aperta até ao osso os porta-vozes do governo dos EUA. Quando foram divulgados os documentos sobre o Iraque, que provavam que os EUA haviam fingido que não sabiam das torturas praticadas pelo governo Maliki, a rede Al-Jazira pôs na tela o ex-comandante dos EUA no Iraque; e lá o deixou, dedicado a tentar não responder às perguntas dos entrevistadores, ‘torturado’, ele também, ao vivo, e muito embaraçado.

E o Emir sabe como embaraçar gente que se atravesse em seu caminho. À parte ser fabulosamente rico, proprietário de grandes áreas em Londres – além de ser o maior exportador de gás liquefeito do Médio Oriente – não é homem que engula insultos. Quando visitou Washington durante o governo Bush, e foi convidado a encontrar-se com Dick Cheney, viu, surpreso, sobre a mesa do vice-presidente, um grande arquivo com uma etiqueta “Al-Jazira”. “O que é isso?”, perguntou o Emir. Cheney respondeu que planeava reclamar da cobertura que Al-Jazira fazia da guerra do Iraque. “Nesse caso, terão de falar com os editores, no Qatar” – respondeu o Emir. E saiu da sala.

Mas será a Al-Jazira a moeda de troca de tão alto valor que os telegramas diplomáticos dos EUA sugerem? Um telegrama de Novembro de 2009 da embaixada dos EUA em Doha sugere que a estação é “um dos mais valiosos instrumentos políticos e diplomáticos do Qatar”. As relações Qatar-sauditas melhoraram, quando a rede Al-Jazira baixou o tom da cobertura da família real saudita, diz a embaixada. Mas a administração da estação não foi além de inventar ‘chamadas’ de histórias que não tinha nenhuma intenção de passar e, depois, sugerir aos vizinhos árabes que havia cancelado a transmissão como sinal de consideração pelos sentimentos dos outros. Noutras palavras, cancelaram ‘peças’ que jamais tiveram intenção de distribuir.

Não há dúvidas de que o Qatar sabe o que fazer para perturbar os seus “irmãos” árabes. O presidente Mubarak ficou furioso com o modo pelo qual o Emir sequestrou as discussões entre a Autoridade Palestina e o Hamas – o monopólio que o Egipto tinha sobre essas conversações era das poucas coisas importantes que o Egipto tinha para usar como troca com os EUA –, e se o Emir elogiou o Hezbollah libanês, pelo combate que impôs a Israel, ele adorou que o primeiro ministro de Israel Shimon Peres tenha conversado com estudantes árabes em Doha. Há relações comerciais entre o Qatar e Israel. O Emir chegou a envolver-se pessoalmente em assuntos libaneses – que antes foram monopólio dos sauditas no Golfo – e o chamado Acordo de Doha foi formulado para evitar violência futura entre o Hezbollah e o governo eleito no Líbano (do qual o Hezbollah participa). Infelizmente para os libaneses, também deu direito de veto ao Hezbollah nas decisões do gabinete libanês. Os sauditas não gostaram.

 

Os egípcios continuam incomodados – o Emir pode descartar a “democracia” egípcia quando o Partido Nacional Democrático de Mubarak vence eleições fraudadas, por mais de 80% nas eleições da semana passada –, mas os americanos seriam tolos se acreditassem que o primeiro-ministro do Qatar realmente ofereceu a Mubarak a cessação de todas as críticas na rede Al-Jazira em troca de uma paz duradoura entre Israel e os palestinos.

Quando Moubarak visitou Doha e pediu para conhecer os estúdios da Al-Jazira, surpreendeu-se com a modéstia das instalações. “Quer dizer que essa caixa de fósforos é que me causa tantos problemas?”, perguntou. Sim, ela mesma.

É difícil saber o que fazer do Qatar como nação. O gás liquefeito gera biliões, mas é caríssimo para entregar pelo mundo em navios-tanques, porque tem de viajar congelado. Talvez o Qatar seja um Estado imaginário, porque a maioria da população são estrangeiros e os planos futuros são de uma ambição de Creso. Está para ser construído um novo sistema de metro, com 60 estações; como o Qatar distribuirá todas as estações na sua terra é tema que se deve entregar à imaginação. Não há parlamento, não há democracia – o Emir ascendeu ao trono por um golpe sem sangue, enquanto seu pai andava na Suíça conferindo contas bancárias –, mas tampouco há, quase inacreditavelmente, qualquer grande rede de polícia secreta.

Sim, o Emir está preocupado com o Irão. As revelações de WikiLeaks, de que o rei Abdullah da Arábia Saudita, falando sobre o Irão, disse aos americanos que seria necessário “cortar a cabeça da serpente” provocaram uma repentina reunião de cúpula do Golfo, em Abu Dhabi, essa semana.

Desnecessário dizer que os qataris estão também preocupados – embora sejam menos arcaicos nos seus medos –, e há apenas dois anos, discretamente solicitaram que os EUA mudassem a sua épica base aérea para longe da capital Doha. O Emir não quer saber de mísseis iranianos explodindo na sua fulgurante capital, no caso de os iranianos resolverem abrir fogo contra as instalações dos EUA que o Qatar hospeda.

Não há dúvidas de que os iranianos pouparão a rede Al-Jazira. Ou não? Expulsaram as equipes de repórteres que estavam em Teerão, furiosos com a cobertura das eleições iranianas do ano passado. Mas não há dúvida de que foi George Bush quem, como o mundo sabe, ameaçou bombardear as instalações de Al-Jazira, ideia que Tony Blair espertamente aconselhou-o a esquecer. Quando o próprio Blair visitou as instalações da rede, um repórter perguntou-lhe se a história com Bush era verdadeira ou falsa. “Acho melhor continuarmos a visita”, Blair respondeu. Logo, era verdade.

A Al-Jazira – a verdadeira voz da nação – tem também uma estação de desporto, que colherá os frutos que merece, agora que o Mundial de Futebol de 2022 vai ser no Qatar, com quase 250 mil fãs visitando o Golfo, muitos dos quais hospedados em transatlânticos.

Se o Emir estiver vivo e bem de saúde, tornar-se-á ainda mais conhecido e famoso e reverenciado – para infinita inveja de todos aqueles “irmãos” árabes.

A Al-Jazira continua a afirmar que é independente. O canal de notícias não tem – nem pode ter – finalidades de lucro e, assim sendo, a generosidade do Emir plana sobre as cabeças de todos. Mas, sim, criticaram o primeiro-ministro e funcionários públicos e entrevistaram dissidentes que denunciaram torturas pela Polícia.

É uma relação complicada. Quanto àquele dinheiro todo que supostamente estaria sendo enviado à Al Qaeda, os norte-americanos esperavam o quê?

O Golfo criou Bin Laden para lutar contra os russos e, durante anos, os mesmos países financiaram os Taliban via o Paquistão. Não há razão que autorize supor que a coisa teria sido suspensa hoje. Os árabes do Golfo sabem que têm de manter relações de dupla via com o mundo externo, metade com os EUA e metade com “o interior” da região. Os EUA deveriam agradecer à sorte que já não se fale do nacionalismo árabe. É verdade que o Wahabismo (do tipo do de bin Laden) talvez apele aos corações muçulmanos – mas não há dúvida de que o comércio, sim, é apelo irresistível.

8/12/2010

Retirado do The Independent

Tradução da equipa de tradutores da Vila Vudu, distribuído pela redecastorphoto

Qatar: Uma breve história

 

História: Durante os anos 1940s, o Qatar transformou-se, de uma das mais pobres nações do Golfo, numa das mais ricas, explorando reservas de petróleo e gás. Ex-protectorado britânico, o país declarou-se independente em 1971.

Governo: Governado pela família Thani há já quase 150 anos, o actual Emir, Sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani, tomou o trono do pai, em golpe sem sangue em 1995. É conhecido pelas reformas liberais, é defensor da liberdade de imprensa e a favor de as mulheres terem postos no governo. Para os críticos, nem sempre a realidade corresponde à retórica.

População: 1,7 milhões de pessoas vivem no Qatar, embora só 200 mil nascidos no país. A maioria são expatriados e trabalhadores estrangeiros, que buscam os empregos gerados pelo boom económico.

Indústria: Ex-centro de pesca de pérolas, o Qatar explora hoje os seus recursos (é dono de 15% das reservas de gás do planeta).

Sobre o/a autor(a)

Jornalista inglês, correspondente do jornal “The Independent” no Médio Oriente. Vive em Beirute, há mais de 30 anos
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