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O castelo de cartas irlandês

Fica óbvio agora que a Irlanda, como o Lehman Brothers há dois anos, expôs a fragilidade (ou melhor, a falta de escrúpulos criminosa) do mundo dos negócios financeiros. Por Harry Browne.
Os que tomam as decisões sobre o futuro da Irlanda são agora oficialmente o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Ainda que tentem ser educados, às vezes a máscara cai. Foto de infomatique, FlickR

Está-se a discutir muito por aqui ultimamente sobre o Levante de Páscoa irlandês1. Nada particularmente interessante: só os “homens de 1916” convertidos agora em protagonistas de uma série de questões retóricas que se reduzem a uma só – “Foi para isto que deram as suas vidas?” O Irish Times, encarniçado inimigo daqueles rebeldes há 94 anos e raramente simpático a eles desde então, colocou essa questão num editorial, na semana passada, e vem publicando desde então cartas seleccionadas numa página intitulada “Para isto?”.

Não é surpreendente recordarmos a luta pela independência nacional agora, quando o Estado irlandês implora/negoceia um empréstimo com os bancos estrangeiros para poder pagar aos credores estrangeiros os bónus da dívida pública irlandesa. Precisamente hoje, o Sinn Fein, o partido que mais se esforça por se proclamar herdeiro dos combatentes pela liberdade de 1916 e da subsequente Guerra da Independência, registou uma assombrosa vitória em eleições parciais celebradas no pedregoso terreno do sudoeste de Donegal.

Mas o espírito de desespero e de raiva que se pode notar aqui é algo que vai mais além do nacionalismo. O Sinn Fein ganhou em Donegan: (1) porque o seu candidato, Pearse (de novo 1916!) Doherty foi aos tribunais para forçar a realização de uma eleição intercalar contra a vontade de um governo desesperadamente dependente de uma exígua maioria parlamentar; e (2) porque, como partido, teve a coragem de se opor ao consenso de austeridade imperante em quase todos os demais partidos e que também preside às actuais negociações para o resgate da Irlanda com o FMI, a União Europeia e o Banco Central Europeu.

Somente levando isso em conta, assim como o crescente clamor popular pela “queima dos donos de bónus”, os credores globais dos bancos irlandeses que faliram quando estourou a bolha imobiliária, podemos começar a discernir o verdadeiro significado potencial do momento presente e do papel da Irlanda nele.

Apesar de tudo, em 1916 a Irlanda não lutou apenas pela sua própria autodeterminação. Cravou um punhal nas costas do Império Britânico enquanto este estava a combater a sua própria “Grande Guerra”. Quando os britânicos concederam a independência de 26 dos 32 condados da ilha em 1921, as reverberações da luta irlandesa já se tinham propagado pelo mundo. Os anti-imperialistas, desde Gandhi até Ho Chi Min, não se cansaram de citar a luta irlandesa e a sua vitória, num enclave tão próximo do coração do império, como um acontecimento de importância seminal. O edifício colonial global acabou por revelar-se um castelo cartas, e quando a Irlanda retirou uma dessas cartas, toda a estrutura ficou abalada e o edifício começou a desmoronar.

Um refúgio de jogadores financeiros globais

A Irlanda dos nossos dias está a pagar o preço da sua perigosa e vulnerável localização no império global do capital. Durante os últimos 20 anos, incentivada pelos seus sócios multinacionais, este estado converteu-se num porto de grandes empresas que buscavam uma base europeia com baixos impostos. Num determinado momento, o estado irlandês, excluindo o Norte controlado pelos britânicos, chegou a ter mais de um quarto dos investimentos externos directos dos EUA na União Europeia, e isso quando representávamos apenas 1% da população da UE. O país tornou-se também refúgio de jogadores financeiros globais que buscavam um esconderijo escassamente regulado para as partes mais questionáveis dos seus negócios.

Dublin converteu-se numa das capitais mundiais dos fundos abutres de investimento livre. Os banqueiros alemães, celebrados pela sua famosa prudência, fizeram coisas aqui que nunca sequer sonharam fazer no seu país.

Mas precisamente por isso a Irlanda está excelentemente localizada para voltar a lançar um dardo contra o império: essa é, sem dúvida, uma das razões pelas quais, em Setembro de 2008, quando caiu o Lehman, a UE pressionou o ministro das Finanças irlandês, Brian Lenihan, para dar um cheque em branco garantindo a protecção dos investidores em todos os bancos irlandeses, incluindo aí, como se sabe, o banco Anglo-Irlandês.

O Anglo era uma instituição de novos-ricos que se converteu essencialmente num casino para quem especulava com a propriedade imobiliária do país à medida que a bolha inchava. Os bancos mais experientes, o AIB e o Banco da Irlanda, seguiram o exemplo, mas ao menos continuaram a funcionar como canalizadores de crédito para outras partes da economia. O Anglo era mais ou menos um clube privado sem qualquer importância sistémica. No entanto, o ministro Lenihan garantiu o banco e fê-lo com um custo para o estado irlandês que, segundo se estima agora, pode chegar aos 30 mil milhões de euros. Agora sabemos também que a lista de detentores de bónus do Anglo é uma espécie de “quem é quem” do capital europeu.

Ao garantir publicamente esses bancos, o Estado irlandês converteu a sua “dívida soberana” numa extensão da dívida dos bancos (o uso do termo “soberana” disparou emoções análogas àquelas relacionadas ao Levante de 1916). E essa é a razão principal pela qual os mercados de bónus não querem saber nada da Irlanda. Também é verdade que o Estado, após anos no negativo, está a incorrer em gigantescos défices: isso é simplesmente consequência do neoliberalismo que nos empurrou para baixos impostos sobre o rendimento e jogou todas as fichas em impostos sobre as transacções imobiliárias, bens e serviços.

Esses últimos impostos significam que o Estado nadou em dinheiro durante o frenesi comprador dos primeiros anos desta década; quando o frenesi diminuiu, os cofres esvaziaram-se. E, cabe dizê-lo, o neoliberalismo continua a dizer que não há solução que passe por maiores impostos para os ricos. Nem tampouco mostra maior inclinação ideológica a “estimular” uma economia, cujos capitalistas nacionais relevantes jogam um papel relativamente pequeno.

As exportações continuam a ser fortes, razão principal de o PIB da Irlanda não estar com tão mau aspecto como se poderia pensar, mas os últimos três anos demonstraram conclusivamente que as exportações não podem fazer muito mais pela “economia real”. O novo plano quadrienal de austeridade do governo irlandês prova o quão pouco a economia nacional irlandesa conta para aqueles que tomam decisões sobre o nosso futuro.

Declarar-se em falência é melhor para o paciente irlandês”

Os que tomam as decisões sobre nosso futuro são agora oficialmente o FMI, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu. Ainda que tentem ser educados, às vezes a máscara cai, como quando o comissário europeu de Assuntos Económicos, Alli Rehn, nos advertiu que o governo irlandês era obrigado a apresentar um orçamento nacional antes de convocar eleições.

Agora mesmo tem de enfrentar uma verdadeira avalanche canalizada pelas redes sociais e que envolve todo o espectro político irlandês, que exige que a nação se declare falida. Um artigo publicado nada menos que no Bloomberg (o famoso diário económico electrónico norte-americano), que recomendava precisamente isso (“Declarar-se em falência é melhor para o paciente irlandês que um resgate”) teve grande difusão pela Internet na Irlanda nos últimos dias.

É provável que, chegando-se a esse ponto, sejam feitas algumas pequenas concessões, ainda que só para assentar um precedente para a próxima onda de resgates de países da União Europeia, um precedente que salve as aparências do “sofrimento compartilhado”. Talvez pudesse se oferecer aos portadores bancários de bónus mais antigos um acordo para trocarem dívida protegida por acções, mas sabe lá Deus quem poderia querer acções nos bancos irlandeses.

Fica óbvio agora que a Irlanda, como o Lehman Brothers há dois anos, expôs a fragilidade (ou melhor, a falta de escrúpulos criminosa) subjacente ao mundo dos negócios financeiros. O crucial, politicamente falando, é que a Irlanda se sirva da sua posição decisiva neste momento da crise não só para assegurar a sua própria sobrevivência, mas também para contribuir para colocar um fim ao processo de pauperização que arrastará a Europa e o mundo inteiro, se esse tipo de “resgates”, que não são outra coisa do que transferências de riqueza para os já ricos, se tornar a norma.

Não podemos dar-nos por satisfeitos com algum acordo para salvar as aparências com os portadores de bónus que apostaram com os nossos bancos, ou melhor dizendo, que calcularam que essa “aposta” não podia de modo algum ser perdedora, porque os seus sócios políticos no delito não permitiriam isso de nenhum modo. E se a Irlanda cerrar fileiras e proclamar: “Não há acordo!” e isso causar o desmoronamento do castelo de cartas, pois que assim seja.

O vergonhoso papel dos Verdes na Irlanda

A correlação política de forças na Irlanda torna isso improvável. Os principais partidos de centro-direita, Fianna Fail (no governo) e Fine Gael (na oposição) estão, no essencial, abraçados no discurso da austeridade e na subserviência aos senhores financeiros. Do mesmo modo o Partido Verde: um recente artigo de Mike Whitney poderia dar a impressão de que os Verdes estavam a dar o tiro de misericórdia no governo ao qual vêm dando apoio há três anos e meio, mas o que disseram na verdade é que só sairiam do governo quando o dano tiver sido perpetrado, dentro de algumas semanas.

Por outro lado, o ressurgimento de um Sinn Fein onde volta a falar claro o líder do partido, Gerry Adams, que está a mover as suas bases políticas ao sul da fronteira para concorrer nas próximas eleições parlamentares, e o nascimento de uma nova formação, a Aliança da Esquerda Unida, à esquerda do nosso desesperadamente vazio Partido Trabalhista, dão algum motivo fundado para o optimismo. Mas a maior esperança de mudança real por internacionalizar a resistência de modo semelhante à forma como “os mercados” internacionalizaram a crise. Ouvem-se muitas coisas nestes dias sobre os movimentos de alta nos rendimentos dos bónus portugueses, mas muito pouco sobre a greve geral de Portugal.

O movimento sindical irlandês procura sair de décadas de obscuridade marcadas pelo “diálogo social” com governos e empresários, lançando-se à mobilização que resultou na enorme manifestação de 27 de Novembro em Dublin. No mesmo fim de semana, o governo irlandês anunciava os termos da sua negociação com o FMI e companhia. (Diga-se de passagem: uma medida da confusão autopunitiva instalada no país pode ser dada pelo seguinte facto: há alguns dias, muita gente saudava o FMI como uma instituição mais competente para enfrentar a crise do que qualquer instituição irlandesa). Nos próximos dias saberemos muito mais sobre os níveis de resistência e resignação, assim como sobre os níveis de miséria e servidão determinados pela futura direcção desta crise.

Harry Browne é professor na Escola de Meios de Comunicação no Dublin Institute of Technology, da República da Irlanda. Artigo publicado em “Bitácora”, Uruguai. Tradução para Sin Permiso por Miguel de Puñoenrostro. Tradução para Carta Maior por Katarina Peixoto, adaptada para Portugal por Luis Leiria.

1 Rebelião na Irlanda durante a Semana Santa, em 1916. A revolta foi uma tentativa por parte de militantes republicanos irlandeses para ganhar a independência em relação ao Reino Unido. Foi a mais importante revolta na Irlanda desde a rebelião de 1798.

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