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Confirmado: Os EUA não se preocupam com a injustiça no Médio Oriente

Quantidade imensa de literatura diplomática prova que o pilar da política dos EUA para o Médio Oriente é o alinhamento com Israel, que o seu principal objectivo é encorajar os árabes a unir-se à aliança EUA-Israel contra o Irão.
Peregrinos muçulmanos rezam no Monte Arafat, perto da cidade sagrada de Meca, Arábia Saudita

Aproximei-me desconfiadíssimo, do mais recente rumoroso episódio diplomático. E ontem, depois das eleições no Cairo – as eleições parlamentares egípcias foram, como sempre, mistura de farsa e fraude, o que, afinal de contas, sempre é melhor que choque e horror – mergulhei nos milhares de telegramas diplomáticos norte-americanos, sem absolutamente qualquer esperança. Como disse o presidente Hosni Mubarak, e lê-se num dos telegramas, “vocês sabem esquecer a tal de democracia”.

Não que os diplomatas dos EUA não entendam o Médio Oriente; é que eles já não sabem ver a injustiça. Quantidade imensa de literatura diplomática prova que o pilar da política dos EUA para o Médio Oriente é o alinhamento com Israel, que o seu principal objectivo é encorajar os árabes a unir-se à aliança EUA-Israel contra o Irão, que a bússola da política dos EUA é a necessidade de domar/minar/esmagar/oprimir e, por fim, destruir o Irão.

Não escapou praticamente (pelo menos até agora) nenhuma referência às colónias israelitas ilegais exclusivas para judeus na Cisjordânia, nem aos ‘postos de controle’ israelitas, aos colonos israelitas extremistas, cujas casas pintam como cicatrizes de varíola toda a Cisjordânia palestiniana ocupada – ao vasto sistema ilegal de roubo de terra que é o coração da guerra Israel-palestinianos. O que se vê mais, por incrível que pareça, são os mais variados espécimes de importantes diplomatas norte-americanos acocorados e rendidos ante as exigências de Israel – vários deles visivelmente apoiantes ardentes de Israel. É como se os chefes da Mossad e os agentes militares de espionagem de Israel obrigassem os padrinhos a ouvir e decorar as instruções dos apadrinhados.

Há maravilhosa passagem nos telegramas, quando o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu explica a uma delegação do Congresso dos EUA, no dia 28/4/2009, que “O Estado palestiniano, só se for desmilitarizado, sem controle sobre o espaço aéreo e campo electromagnético [sic], sem poder assinar tratados nem controlar fronteiras”. Assim sendo, adeus ao Estado palestiniano “viável” (palavra de Lord Blair de Isfahan) que todos supostamente desejamos. Não há registo nos telegramas de que os rapazes e moças deputados e senadores dos EUA e que lá ouviam Netanyahu tenham discordado.

Em vez disso, o “The New York Times” procurou as melhores frases. Eis o rei Abdullah da Arábia Saudita, por seu embaixador em Washington (sempre amigo da imprensa), dizendo que Abdullah crê que os EUA devem “cortar a cabeça da serpente” – onde, em “a serpente”, leia-se “o Irão” ou “Ahmadinejad” ou “as instalações nucleares do Irão” ou qualquer um desses itens ou todos.

Mas os sauditas vivem ameaçando cortar a cabeça de serpentes. Em 1982, Yasser Arafat disse que deceparia o braço esquerdo de Israel (depois que Israel invadiu o Líbano) e o então primeiro-ministro de Israel Menachem Begin respondeu que deceparia o braço direito de Arafat. Acho que quando somos informados – como, desgraçadamente, agora, por WikiLeaks – de que candidatos a visto norte-americano, mas que os EUA não queiram por perto, são chamados pelos diplomatas dos EUA de “víboras do visto” [ing. visa vipers], a única conclusão a que podemos chegar é que cresce em todo o mundo o pedido de ofídios.

O problema é que, por décadas, os potentados do Oriente Médio ameaçam decepar cabeças de cobras, serpentes, ratos e insectos iranianos – esses últimos preferidos de Saddam Hussein, que usou “insecticida” fornecido pelos EUA para a matança como bem se sabe –, enquanto os líderes israelitas chamaram os palestinianos de “baratas” (Rafael Eitan), “crocodilos” (Ehud Barak) e “bestas de três patas” (Begin).

Tenho de confessar que gargalhei, de chorar de rir, ante um telegrama de diplomata dos EUA, em tom solene-ridículo, reportando do Bahrain, que o rei Hamad – ou “Sua Alteza Suprema Rei Hamad”, como faz questão de ser chamado, na sua ditadura de maioria xiita em reino pouco maior que a ilha de Wight – havia declarado que o perigo de deixar prosseguir o programa nuclear iraniano era “maior que o perigo de fazê-lo parar”.

O maravilhoso jornalista palestiniano Marwan Bishara acertou ao dizer, no fim-de-semana, que esses papéis diplomáticos dos EUA são mais interessantes para estudos antropológicos, que para estudos políticos; porque são documento de uma perversão do pensamento ocidental sobre o Médio Oriente. Se o rei Abdullah (versão saudita em ruínas, em oposição à versão Reizinho Valente da Jordânia) realmente chamou Ahmadinejad de Hitler, se o conselheiro de Sarkozy chamou o Irão de “Estado fascista”, então prova-se, apenas, que o departamento de Estado dos EUA continua obcecado com a II Guerra Mundial.

Adorei o espantoso relato de alguém que visitou a embaixada dos EUA em Ancara e contou aos diplomatas que o Líder Supremo do Irão Ali Khamenei sofria de leucemia e estava à morte. Não porque o pobre velho sofra de cancro – é mentira – mas porque é o mesmo tipo de descalabro sobre líderes do Médio Oriente recalcitrantes que se vê há muitos anos. Lembro de quando “fontes diplomáticas” norte-americanas ou britânicas inventaram que Gaddafi estaria a morrer de cancro, que Khomeini estaria a morrer de cancro (muito antes de ele morrer), que o matador de aluguer Abu Nidal estaria a morrer de cancro 20 anos antes de ser assassinado por Saddam. Até na Irlanda do Norte um britânico burro contou-nos que o líder protestante William Craig estaria a morrer de cancro. Claro que Craig sobreviveu, como o horrível Gaddafi, cuja enfermeira ucraniana é descrita nos documentos dos EUA como “voluptuosa”, o que ela é. Mas haverá alguma dama loura não “voluptuosa”, nesse tipo de novelão?

Uma das reflexões mais interessantes – atentamente ignorada pela maioria dos jornais pro-WikiLeaks de ontem – aparece no relato de encontro entre uma delegação do Senado dos EUA e o presidente Bashar Assad da Síria, no início de 2010. Os EUA, disse Assad aos visitantes, possuem “gigantesco aparato de informação”, mas fracassam ao analisar essa informação. “Nós não temos as habilidades que os senhores têm”, disse em tom sinistro, mas “somos bem-sucedidos no combate aos extremistas porque contamos com melhores analistas. (...) Nos EUA vocês gostam de fuzilar [terroristas]. Sufocar as redes deles dá melhor resultado”. O Irão, concluiu Assad, era o mais importante país da região, seguido da Turquia e – número três – a Síria. O coitado velho Israel nem aparece no retrovisor.

Evidentemente, o presidente Hamid Karzai do Afeganistão é “movido à paranóia” – como todos os habitantes daquela terra, inclusive quase toda a NATO e, sobretudo, os EUA – e naturalmente o presidente do Iémene mente ao próprio povo que está a matar representantes da al-Qa'ida, quando todos o mundo sabe que os verdadeiros culpados são os guerreiros do general David Petraeus. Líderes muçulmanos não fazem outra coisa além de mentir que as proezas militares dos EUA contra outros muçulmanos são proezas deles, não ‘nossas’.

Claro, não se pode ser tão cínico. Gostei muito do telegrama diplomático dos EUA (do Cairo, claro, não de Telavive) no qual se lê que Netanyahu seria “elegante e sedutor (...) mas nunca cumpre o que promete”. Ora! Não se aplica também a metade dos líderes árabes?

E assim chegamos ao apimentado e assustador relato de encontro entre Andrew Shapiro, “Secretário Assistente de Estado do Gabinete Político-militar dos EUA” e espiões israelitas há quase exactamente um ano. Israel não pode proteger os seus Cessna Caravan e Raven aviões-robôs não pilotados no sul do Líbano, reconheceu a Mossad (o Hezbollah deve à Mossad essa preciosa informação). Um coronel israelita “J5”, coronel Shimon Arad gorjeia sobre os perigos do “Hezbollahstão” e do “Hamastão” e sobre “o impasse político interno” no Líbano – naquele momento não havia; agora, há – e sobre o Líbano como “arena militar volátil” e a “susceptibilidade do Líbano a influências externas, inclusive da Síria, do Irão e da Arábia Saudita”.

E – claro, apesar de o coronel Arad não ter falado sobre isso – também susceptível à influência de norte-americanos, israelita, franceses, britânicos, além, também de o Líbano também ser susceptível à influência dos turcos. Shapiro “citou a necessidade de oferecer alternativa ao Hezbollah” – talvez... os polícias da Costa Rica? – e sugeriu que o exército libanês poderia defender o Hezbollah (improvável, nas actuais circunstâncias).

Há uma inestimável rejeição-negação do relatório Goldstone da ONU sobre as atrocidades em Gaza em 2008-09, pelo major-general da reserva Amos Gilad, que diz que os documentos em que se critica Israel são “sem fundamento, porque os militares israelitas fizeram 300 mil chamadas telefónicas para as residências em Gaza antes dos ataques aéreos (...) para evitar baixas entre os civis.” O infeliz, pobre Shapiro, dado que o telegrama não regista a resposta dele, manteve-se em silêncio. Teria sido apenas uma, de cada cinco famílias palestinas, avisadas por telefone, se se considera a população palestina total de Gaza, crianças, bebés, todos. E mesmo assim os israelitas mataram 1.300 palestinianos, a maioria dos quais civis. Claro que a Autoridade Palestina do insípido Mahmoud Abbas não quis assumir esse campo de morticínio depois que os israelitas venceram – como Israel propôs-lhe, com aprovação dos EUA – porque Israel não venceu em Gaza. Sequer conseguiram localizar nos túneis de Gaza o soldado israelita que o Hamás mantém preso há anos.

Há momento simbólico quando o Xeque Mohamed bin Zayed al-Nahyan de Abu Dhabi – sem comparação possível com o personagem “distante e sem carisma” do seu irmão Califa – preocupa-se com o Irão na presença do embaixador dos EUA Richard Olsen o qual, então, comenta que o Xeque “manifesta visão estratégica sobre a Região curiosamente semelhante à visão israelita”. Mas é claro que manifesta! São idênticos. Todos rezam nas suas mesquitas de ouro, reis e emires e generais, comprando mais e mais armas dos EUA para se protegerem contra “o Hitler” de Teerão – melhor Hitler, acho eu, que o Hitler do Tigre em 2003, que o Hitler do Nilo de 1956 – e praza a Deus Todo Poderoso que sejam salvos pelos santificados EUA e Israel.

Fico, em suspense, à espera do próximo capítulo dessa fantasia-farsa.

Artigo publicado em The Independent, traduzido pelo Colectivo da Vila Vudu e disponível em redecastorphoto

Sobre o/a autor(a)

Jornalista inglês, correspondente do jornal “The Independent” no Médio Oriente. Vive em Beirute, há mais de 30 anos
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