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The voice

Cavaco tem agora falado para apelar ao silêncio. Não digam mal das agências financeiras. Silêncio. São os nossos credores. Parece mal dizer que os agiotas são agiotas. Caluda. Reverentes, subservientes, aguentem.

Cavaco e a sua voz. Tem azar, o homem. A voz sai-lhe sempre meia engelhada, cheia de tiques e toadas plúmbeas. Fica ali presa algures, talvez na maçã-de-adão, por onde sai um fio insignificante e crespo. Silabado. Sílaba por sílaba vai ameaçando dizer alguma coisa. A gente já tinha desistido de o ouvir e quando ele começa, diz, que fartura. Depois, há como que um tambor que toca solene e a gente, que já tinha voltado as costas, fica assim entre portas, ainda na expectativa de ouvir um pensamento, uma solução, uma novidade em primeira-mão. Nada. Barricado no hierático cargo de Presidente, emite uns sons a fugir para o cacarejo, escondendo-se depois num silêncio protector.

Parece um jogador que tem sempre uma carta escondida. Não tem. Faz bluff. Insinua que em qualquer momento pode fazer o que nunca fará. E quando pode fazer alguma coisa diz que nada pode fazer, fazendo sempre qualquer coisa subterrânea. Na sombra. Na sombra da voz.

A baixa temperatura da voz. Uma voz que não é afónica mas também não é límpida. Parece que se escusa sempre a revelar-se.

Os olhos ásperos são como a voz. Graves mas sem expressão, ou com uma expressão inexpressiva.

Cavaco é um avarento da moral. Ambiciona o seu monopólio. Para compensar, mais à direita, Paulo Portas assume-se como um perdulário da moral. Tem-na aos rodos para todos os gostos e feitios.

Este traço moralista passa a rabisco, melhor dizendo, a gatafunho, quando nos lembramos do seu staff de executivo.

Basta olhar para o perfil do staff cavaquista, com os Dias Loureiro, os BPN e quejandos, os conselhos de administração de empresas, as consultorias, os grandes escritórios de advogados, para perceber a matéria de que esta ética é feita.

Basta lembrar o tempo interminável que levou a saída de Dias Loureiro do Conselho de Estado, onde o próprio Cavaco o tinha enfiado, para aquela ladainha da moral, e a ladainha do partido ser Portugal, começar a desafinar e a moer o ouvido.

Os íntimos de Cavaco caracterizam-se na sua maioria por terem um tecido mental económico, absolutamente tecnocrata. São pouco dados à brincadeira.

Uma pacatez ensimesmada e ácida. É como nos querem ver a todos. Pacatos, com sonhos privados e ácidos nalgumas áreas. Quando se rosna contra a política ficam falsamente transtornados. Mas esse maldizer que prescinde da cidadania fá-los compreensivos e ternos.

Aproveitando a onda, Cavaco sem pejo nem a mais ínfima parcela de rubor, afirma convictamente que não é político. Mais, o antigo presidente do PSD e o actual presidente da República do PSD, diz que não é do PSD. Não tem partido.

Temos o Cavaco que merecemos?

Não sei. Não sei sequer se o teremos, apesar das sondagens. O mundo dá muita volta. Aliás anda sempre a girar. Só Cavaco fica sempre na dele. Sempre a insinuar que vai dizer qualquer coisinha, e depois, népia. Dá vontade de dizer, descose-te, lá, homem.

O alfabeto do silêncio é declinado com a prosápia de um pavão humilde, dos que dizem, eu gostava de mostrar as minhas penas magníficas mas não posso mostrar as minhas magníficas penas. E vai daí não mostra. Mas depois pergunta, se não fosse a minha plumagem onde estaria este país.

Há militantes sociais-democratas que querem um PSD à prova de Cavaco. Outros interesses, chefias e caminhos. Este, manhoso, faz que não é nada com ele.

Alguns, que agora se perfilam, tinham saído do cavaquismo pelas escadas de emergência, quando este ia caindo aos poucos, desengonçado, e já sem préstimo.

Outros eram ainda muito jovens, militando na JSD, isto é, preparando o futuro.

Mas velhos ou novos a substância é a mesma.

Negócios, negociatas, traficâncias, pactos, juras, partilhas, oportunidades, que o governo, que se preparam para ser, há-de propiciar.

Cavaco tem agora falado para apelar ao silêncio. Não digam mal das agências financeiras. Silêncio. São os nossos credores. Parece mal dizer que os agiotas são agiotas. Caluda. Reverentes, subservientes, aguentem. A democracia ainda não chegou aí. Para consumo interno, vá lá que não vá. Se querem dizer mal do Sócrates, digam mal do Sócrates. Mas não toquem naqueles, que com o mesmo Sócrates, nos avariam a vida.

Parece mal.

Cavaco nada diz, e aconselha a que nada digamos.

Os pavões são aves que se alimentam de invertebrados.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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