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Ângela na Alemanha

Esta Alemanha de Ângela Merkel está cada vez mais empanzinada de tiques perigosos.

Passeia-se pelo passado com um à vontade que dá que pensar. Fica-se estarrecido. Esta Alemanha é narcisista, é totalitária, é despudorada. Olha-se ao espelho e diz, sou tão linda e tão inteligente. Não me sujem nem o meu sangue puro nem a minha magnífica inteligência.

Acontece que enquanto houver memória o sangue puro alemão terá a marca ariana que encomendou a guerra. E a inteligência terá a memória concentracionária do holocausto e do discurso infame que o acompanhou. Um discurso semelhante àquele que agora brada que os muçulmanos baixam a inteligência colectiva da Alemanha.

Há como que uma tragédia implícita nestas prédicas. Uma tragédia da raça, da raça alemã que se vai preparando para tornar a integrar a ambiência sónica do território germânico.

O fascismo surgiu da neurose capitalista da insaciabilidade. E do medo. E da tecnologia teatral do poder. Não se entende como singrou. Há ali no interior daquele tempo, uma camada que não gosta da pele que tem. Uma camada que quer esfolar a sociedade. Só pode ter sido por isso. Os fascistas foram começando a pouco e pouco a entornar aquele veneno, aquela taça que bebida ia embebedando a pouco e pouco. Uma alquimia maldita. Foi-se desenvolvendo e animando na sombra de um tempo vicioso sem solução. Foi criando outras formas de pensar, ou então reabilitou formas escondidas de pensar. Uma coisa assim, tão contra a civilização humanista que a sociedade já tinha conhecido, não pode sair do nada. Achar compatível com a vida aquela violência, aquela soberba, aquele delíquio malévolo, aquela prática autorizada do esmagamento de qualquer forma de oposição ou de pensamento, só pode ter sido doença. Celebrar a iniquidade só pode ter sido desvario psicopata. E no entanto ele aconteceu. Uma vertigem, uma compulsão para o mal, uma estética da depravação a ser afagada, acalentada, num incêndio sinistro, só pode ter sido demência, essa prima afastada da loucura, porque tem a absoluta falta de lucidez que a loucura sempre esconde, uma espécie de claridade que nos custa a ver, mas que está lá.

Tudo sucumbiu de joelhos à infâmia do fascismo. Quase tudo.

É por isso inquietante o discurso de Ângela e dos seus sequazes. Que aquilo não tinha acabado sabemo-lo todos. Que tinham ficado borras na garrafa que se queria limpa, é do conhecimento público. Mas que o poder alemão discurse para o mundo o mesmo refrão maléfico é intolerável.

Um bocadinho mais abaixo, para ocidente, Sarkozy deporta ciganos. E na bota, Berlusconi cumpre com a sua parte. Exige que no BI se inscreva a etnia a que se pertence, e vai regando com afecto, para que floresçam, os bandos de criminosos que atacam emigrantes.

Os neoliberais utilizam processos semelhantes aos fascistas. À força de repetirem as mesmas intrujices tornadas verdades, condicionam-nos o pensar, tolhem-nos o movimento para a acção, com a sua lógica feita de postulados que consideram inquestionáveis. À força de nos dizerem que não podemos sair daquele barco, não olhamos a possibilidade de nadar para longe daquele barco que agora está a arder, porque os próprios lhe deitaram fogo. Mas nenhum governo diz: Há muito mar para nadar, muita ilha a descobrir. Que se lixe o barco.

O fascismo não aconteceu por acaso. Foi uma opção pela economia da tortura.

O neoliberalismo é a opção pela economia da pobreza. Se for necessária tortura, paciência, torture-se. O planeta produtor e produtivo foi substituído pelo planeta pilhado, empobrecido, pela quimera do lucro fácil, virtual, gratuito, amoral.

Podemos estar a viver o tempo prévio de uma catástrofe.

Quando se fazem estes avisos, os governos riem, grosseiros, quase boçais. Zombam, estouvados e inconscientes, certos de que não há alternativa a esta avaria social.

Não é que não contem com a resistência. Aliás até têm medo. Mas vão sempre adiando a possibilidade de um olhar profundo sobre o mundo.

O olhar quando se detém sobre a vida é já o olhar do acossado, daquele que mata ou morre.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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