O desinvestimento crónico mata o sector cultural

porCatarina Martins

17 de October 2010 - 23:00
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O anúncio do encerramento do Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian deve preocupar-nos a todos.

O Serviço de Belas Artes da Fundação Calouste Gulbenkian é responsável pelo mais importante programa de bolsas e apoio à criação artística que temos no país. Em 2009 financiou projectos no valor de 1,9 milhões de euros. Mais do dobro do financiamento distribuído pelo Ministério da Cultura nos apoios pontuais à criação artística. O anúncio do encerramento deste serviço deve por isso preocupar-nos a todos.

Há 4 anos foi extinto o Ballet Gulbenkian e todos sabemos o grave prejuízo que esta extinção significou para criadores e públicos. Durante anos o público português teve contacto regular com a dança contemporânea e os profissionais contaram com uma referência essencial de qualidade e continuidade. Hoje, a dança contemporânea, como a maior parte das expressões artísticas contemporâneas, está condenada ao gueto da invisibilidade e da instabilidade dos apoios circunstanciais. Desperdiçam-se assim os incríveis ganhos em formação de públicos e profissionais que o Ballet Gulbenkian representou.

Culpa certamente de um Ministério da Cultura e de um Governo inaptos e irresponsáveis que, em lugar de assumirem as suas responsabilidades, agravaram o subfinanciamento da dança e fragilizaram a única Companhia Nacional de Bailado, afogada na estrutura obtusa da OPART.

A reflexão sobre o que aconteceu há 4 anos com a extinção do Ballet Gulbenkian chama-nos a atenção para problemas que persistem e convoca especiais responsabilidades ao sermos confrontados com a decisão de encerramento do Serviço de Belas Artes.

A Fundação Calouste Gulbenkian ocupa histórica e meritoriamente um papel estratégico na estruturação cultural da nossa sociedade. Foi através da sua acção que o acesso à literatura e aos hábitos de leitura se generalizaram, que o acesso à produção contemporânea se democratizou e que se tornou possível o surgimento de uma rede artística sustentada e profissionalizada numa altura em que o Estado não cumpria, nem se propunha cumprir, qualquer papel de relevo. É legítimo dizer que não é possível imaginar o que seria o país sem a Gulbenkian.

A decisão com que agora somos confrontados é uma escolha legítima de uma fundação privada. Mas as consequências desta escolha devem ser discutidas publicamente e sem tabus.

A hecatombe que a rede artística nacional sofreu nos últimos dez anos torna hoje este sector, estratégico segundo o programa do governo, e o principal erro da governação de Sócrates, nas sempre efusivas palavras do primeiro-ministro, incapaz de qualquer resposta sustentada à crise.

Não podemos promover o ensino artístico de jovens como meio de qualificação e integração social, abrindo horizontes de possibilidades e vontade de criar a quem não sabia que podia, para depois lhe negar qualquer hipótese de uma carreira profissional. E negar-lhe até o direito a ser público consumidor de cultura. Há algo de profundamente errado num país que aplaude orquestras de jovens violinos e trata os violinistas como párias.

Devemos pois perguntar claramente e publicamente se estruturas centrais para a vida cultural do país como a orquestra e o coro Gulbenkian serão mantidas com uma política de 20, 30, 50 anos, ou deveremos antes esperar uma reavaliação de 3 em 3 anos de toda a sua estrutura e consequente extinção.

Mas devemos sobretudo questionar o Governo sobre as suas responsabilidades e sobre o Orçamento que nos espera. Por toda a Europa o clamor do sector artístico face à crise que enfrentamos é a que o slogan britânico tão bem expressa: cortem-nos, não nos matem.

Mas em Portugal os cortes matam há já vários anos; o desinvestimento crónico mata o sector cultural e o país. Mais de 2,5% do PIB em Portugal vem da Cultura, um valor vinte vezes superior ao do orçamento do Ministério. Num sector sempre esquecido pelos sucessivos governos, a não ser nas inaugurações com hora marcada para televisão ver, os agentes culturais multiplicam por vinte cada euro investido pelo Estado. Quantos sectores da nossa economia poderão dizer o mesmo?

Na Europa a riqueza gerada pelo sector cultural é superior à gerada pela indústria automóvel. E todos os estudos o comprovam: é na vida cultural activa da população que está a chave para o desenvolvimento – a qualificação.

Exige-se do Governo e do Ministério da Cultura uma resposta que não ignore a importância fulcral do serviço que a Gulbenkian agora pretende extinguir, iniciando imediatamente um processo negocial com a Fundação de forma a garantir que não se estará a pregar mais um prego no caixão em que se tornou a política cultural em Portugal.

Exige-se do Governo que o Orçamento do Estado para 2011 não persista no erro de ignorar a importância estratégica do investimento público em Cultura.

Os desafios que o sector enfrenta obrigam a uma consciência solidária e responsável perante a crise. Que estejamos todos à altura das nossas responsabilidades.

Catarina Martins
Sobre o/a autor(a)

Catarina Martins

Eurodeputada. Dirigente do Bloco de Esquerda. Atriz
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