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O mundo em marcha-atrás

Alterações climáticas: Torna-se evidente que nenhum acordo vinculativo será assinado em Cancún.

Nesta semana, decorre em Tanjin, China, a última conferência de preparação para a cimeira de Cancún, México, onde será discutido pela comunidade internacional o futuro do Protocolo de Quioto. A cada ano que passa, os avisos que vêm da investigação científica sobre alterações climáticas tornam-se mais dramáticos. Sabemos hoje, melhor que nunca, que temos a obrigação de reduzir as emissões de gases com efeito de estufa drasticamente nos próximos anos, sob pena de termos de viver num mundo com um clima muito mais agreste, o que terá consequências graves sobretudo para os mais pobres do planeta.

Na cimeira climática de 2009, em Copenhaga, Dinamarca, os líderes dos países industrializados foram incapazes de assumir um compromisso vinculativo de redução de emissões de gases com efeito de estufa. Tudo o que saiu desta cimeira foi um acordo não vinculativo, feito à pressa por Obama com o apoio de alguns países semi-industrializados, que apenas mencionava a necessidade de limitar o aumento da temperatura média global a 2ºC. Pior, os compromissos de redução de emissões avançados pelos países desenvolvidos ao abrigo deste acordo são tão fracos que, mesmo que sejam cumpridos, conduzirão a um aquecimento global de mais de 3ºC.

A ciência é muito clara em relação ao que necessitamos de fazer. Já não estamos a tempo de evitar as alterações climáticas, dado que excedemos já o nível de concentração de gases com efeito de estufa que nos permitiria ter um clima semelhante ao que tivemos desde que a humanidade surgiu1. Mas podemos actuar para, pelo menos, evitar as piores consequências das alterações climáticas, como a extensão dos desertos na África Subsahariana, o desaparecimento de ilhas no Pacífico Sul (com o aumento do nível médio do mar que resulta do derretimento dos icebergues), o colapso da Amazónia ou, para pegar num exemplo próximo, o agravamento das secas em Portugal.

O desafio não é pequeno: para conseguir ter pelo menos uma probabilidade de 25% de o aquecimento global não exceder os 2ºC necessitamos de reduzir as emissões em 70% relativamente a níveis de 1990, o que implica que três quartos das reservas de combustíveis fósseis conhecidas terão de permanecer inexploradas2.

As perspectivas de conseguir em breve um acordo internacional que responda à crise climática são, contudo, muito fracas. O melhor que a sociedade global neo-colonial já conseguiu até hoje foi o Protocolo de Quioto, através do qual os países da OCDE, excluindo os EUA, assumiram o compromisso de reduzir as emissões em 5% até 2012, relativamente a níveis de 1990. Os truques contabilísticos que o mercado de carbono permite associados a uma recessão mundial parecem ser suficientes para que este fraco objectivo seja cumprido, mas estamos longe de sequer poder dizer que a situação melhorou. Desde 1997, ano de Quioto, graças sobretudo à industrialização nos países em vias de desenvolvimento e à recusa dos EUA em aplicar uma política ambiental minimamente ambiciosa, as emissões de gases com efeito de estufa globais aumentaram em 25%.

Entretanto, em Tanjin, o cenário repete-se. Os governos dos países desenvolvidos (a tríade EUA-UE-Japão) estão demasiado comprometidos com os interesses da indústria, particularmente da exploração de combustíveis fósseis, para poder assumir o compromisso de transição para uma sociedade dependente de fontes de energia limpas. O governo dos EUA, em particular, pretende eliminar a distinção entre países ricos e pobres num tratado pós-Quioto e tem um discurso para com os países em vias de desenvolvimento que segue a máxima “faz o que eu digo, não faças o que eu faço”. Os governos dos países em rápida industrialização (sobretudo China e Índia) têm investido fortemente na expansão do uso de petróleo e carvão e, naturalmente, não estão dispostos a inverter este percurso enquanto os países mais ricos continuarem a negar as suas responsabilidades na crise climática. De lado ficam os países menos desenvolvidos que, apesar de representarem a maioria da população mundial, contam muito pouco nas negociações internacionais.

Os textos da Cimeira de Cochabamba, onde movimentos sociais se encontraram para propor medidas ambiciosas para resolver a crise climática, fazem agora parte das negociações climáticas, graças ao governo da Bolívia. Mas quase ninguém parece interessado em discutir as aspirações das populações. Os assuntos mais discutidos nas negociações estão antes relacionados com a criação de mais buracos no tratado pós-Quioto, que permitam aos países ricos escapar às suas responsabilidades. Um desses buracos é o projecto REDD3, que permitirá aos grandes poluidores continuar a poluir desde que financiem a conservação de florestas em países pobres. Outro buraco é a contabilização das florestas como sumidouros nos países ricos, de forma a que países com grande cobertura florestal (como os do norte da Europa) possam poluir mais. À medida que mais propostas vão sendo aprovadas para expandir o mercado de carbono e manipular a contabilidade das emissões, torna-se cada vez mais difícil avaliar a veracidade dos compromissos de redução de emissões. A UE, por exemplo, prepara-se para chegar a 2020 anunciando um corte nas emissões de 20% a 30% que será apenas virtual, ao mesmo tempo que expande o uso de carvão e o transporte aéreo.

Outro problema sem resolução à vista é o da transferência de fundos para os países mais pobres para apoiar a adaptação às alterações climáticas. Embora os países desenvolvidos se tenham comprometido a transferir 100 mil milhões de dólares ao abrigo do Acordo de Copenhaga (uma quantia irrisória comparada, por exemplo, com os gastos em guerras imperialistas), uma boa parte deste dinheiro está associada à expansão do mercado de carbono. Por outro lado, os EUA têm pressionado para que o dinheiro seja gerido pelo Banco Mundial, uma pretensão rejeitada pela maioria do mundo, dada a natureza pouco democrática desta instituição.

Neste momento, torna-se evidente que nenhum acordo vinculativo será assinado em Cancún. Torna-se também evidente que não será das negociações de gabinete entre governos neo-liberais que sairão as medidas necessárias para travar a crise climática. Por isso é que é tão importante a participação da sociedade civil.

É de esperar que Cancún seja invadida por enormes manifestações pela justiça climática. Também nós, por cá, devemos cumprir o nosso papel e defender a transição para uma sociedade pós-combustíveis fósseis.

Afinal, não temos outra alternativa senão dar o nosso melhor nesta luta.


1 Estudos científicos estimaram em 350 partes por milhão (ppm) o nível seguro de dióxido de carbono (CO2) na atmosfera (ver http://www.350.org/en/about/science). Hoje estamos em 388ppm (dados em http://co2now.org/), pelo que entramos já numa trajectória de aumento da temperatura média global.

3 Redução de Emissões da Desflorestação e Degradação de Florestas

Sobre o/a autor(a)

Ricardo Coelho, economista, especializado em Economia Ecológica
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