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Celebrar, fazendo a República hoje

Retomando o velho e sempre novo combate pela democracia política e social, pela justiça social, pelos direitos de quem trabalha, pela escola pública, pela saúde e pela segurança social para todos.

A República, implantada pela revolução popular de 5 de Outubro de 1910 cujo centenário ontem se assinalou, constitui a primeira tentativa histórica de democratização e de modernização da sociedade portuguesa no séc. XX.

Sabemos hoje que, em aspectos essenciais, ela foi um projecto gorado e, depois, política e militarmente vencido pelo golpismo subversivo das direitas antiliberais e antidemocráticas emergentes no primeiro quartel do século passado por toda a Europa.

Mas nos propósitos matriciais da democracia moderna que enunciou, no que efectivamente realizou, no que tentou e não logrou realizar, isto é, mesmo na sua essencial incompletude, a I República é, sem dúvida, um património da luta emancipatória do povo e da esquerda portuguesa pela democracia, pelo progresso e pela justiça social.

A I República trouxe-nos, talvez, a mais importante reforma civilista das instituições do século XX: a separação do Estado e das Igrejas, a laicidade do Estado e da escola pública, o casamento civil e o divórcio, o registo civil. Fundou, desde logo para o ensino primário, o discurso moderno de defesa da escola pública (universal, obrigatória e gratuita). Criou as Universidades de Lisboa e do Porto (e com elas o IS Técnico, A Fac. de Engª do Porto e o I.S. de Agronomia). Foi muito e foi pouco.

Efectivamente, essas reformas superestruturais, não se estenderam aos domínios vitais da democratização do Estado, da justiça social e do desenvolvimento económico.

A I República temeu democratizar o sufrágio e o funcionamento do sistema partidário, o que originou uma crise de legitimidade que está na origem da instabilidade que marcou a governação republicana.

A I República demonstrou, salvo raras excepções, uma fundamental insensibilidade face à questão social, face à miséria da condição operária, largando em guerra contra as reivindicações sociais com uma dureza e um excesso que acabariam por alienar esse apoio vital, em todos os momentos críticos da sua curta vida, que era o do operariado organizado.

A República sem estabilidade para conduzir um processo de reformas económicas decisivas, acabou por transformar em desígnio nacional a participação suicidária do país na Grande Guerra. E, a bem dizer, não haveria de resistir à desastrosa tragédia humana, militar e financeira em que se saldaria o intervencionismo.

É bom lembrar, no entanto, que a República do pós-guerra viu nascer, pela primeira vez, ainda que de forma dispersa e difusa, uma esquerda republicana que, pontualmente aliada ao movimento sindical, irá formular um conjunto de reformas sociais e financeiras apontadas para uma reconfiguração regeneradora do ideal republicano. Mas era tarde. No confronto com as direitas golpistas e autoritárias, as esquerdas republicanas e operárias vão ser derrotadas em dois rounds.

O primeiro termina com o golpe militar de 28 de Maio de 1926, a que não conseguem opor-se. O segundo começa onde o primeiro acaba: na decisão de resistir à Ditadura Militar de armas na mão. A I República é também essa resistência civil e militar revolucionária, os combates derradeiros dessa guerra civil intermitente que oporá o “ Bloco do 5 de Outubro”, tardiamente reconstituído, à Ditadura e aos seus aliados. A República, devolvida à genuinidade progressista dos seus ideais acabaria por cair nas barricadas do reviralhismo e da resistência operária e popular. Cinco movimentos revolucionários e muitas conspirações depois e após uma tentativa de greve geral revolucionária e uma revolta dos marinheiros da Armada. Foi preciso, entre 1926 e 1939, num movimento repressivo sem precedentes no século XX, deportar, exilar, prender entre 15 a 20 mil pessoas para sobre os escombros da I República impor a Ditadura Militar e o Estado Novo.

Provavelmente, é essa República retemperada e redescoberta com o sacrifício, até há poucos anos quase ignoto, de tanta gente, é essa República que, também ela, inspirou a resistência à Ditadura Militar e ao Estado Novo, é essa República enquanto tentativa pioneira da democratização e da modernização social e política do pais que faz sentido lembrar e assinalar nos seus cem anos.

Não para a comemorar ritualmente como ente coisificado, jazente sem riscos de incómodo nas brumas do passado. Mas para a celebrar, fazendo a República hoje. Retomando o velho e sempre novo combate pela democracia política e social, pela justiça social, pelos direitos de quem trabalha, pela escola pública, pela saúde e pela segurança social para todos, pelos direitos das minorias, pela paz, por uma Europa democrática, cidadã e solidária.

É essa a República da Rotunda, a nossa República: sempre jovem, sempre combatente.

Viva a República!

Intervenção de Fernando Rosas na Sessão Comemorativa do Centenário da República na AR, 6 de Outubro de 2010

Sobre o/a autor(a)

Historiador. Professor emérito da Universidade Nova de Lisboa. Fundador do Bloco de Esquerda
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