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Predação ou solidariedade

Nos bolsos de muitos portugueses e muitas portuguesas, houve um outro estrondo que veio agravar as condições de vida das pessoas – o aumento do custo dos medicamentos.

A semana acabou de forma estrondosa com as novas medidas de austeridade de Sócrates e com o impacto generalizado que elas provocaram. Mas nos bolsos de muitos portugueses e muitas portuguesas, houve um outro estrondo que veio agravar as condições de vida das pessoas – o aumento do custo dos medicamentos. Não nos podemos enganar – quem perde são sobretudo os idosos que têm reformas mais baixas, que têm doenças múltiplas e são polimedicados, para quem já é muito difícil controlar as despesas da água da luz ou do gás e para quem a despesa da farmácia será, naturalmente, a última a ser priorizada. Em alguns casos são 10 ou 15 euros a mais, em outros serão 50 ou 60 euros a mais.

Para estes idosos, muitas vezes, terem acesso a uma receita já é difícil. Levantam-se pelas 4 ou 5 horas da madrugada para terem acesso a uma consulta extraordinária no centro de saúde, com um médico que não conhecem e que varia entre cada consulta, pois já há muitos anos que não têm médico de família atribuído. Quando conseguem a dita consulta, a sua sorte também varia: com sorte apanham um médico sensibilizado para os seus problemas económicos que dispensa genéricos para todos os medicamentos, com azar calha-lhes um mais sensível aos apelos injustificáveis do bastonário da Ordem dos Médicos para “trancarem” a receita na marca mais cara do mercado. Se tiverem que fazer exames complementares de diagnóstico certamente poderão fazer em muitas clínicas privadas com convenções com o Estado, mas terão que deixar a sua taxa moderadora, o que adicionada à taxa moderadora do centro de saúde e ao preço dos medicamentos inflaciona a despesa lá de casa.

Depois a passagem pela farmácia também será uma aventura. Há farmácias para tudo: as que aconselham os utentes e que fornecem informação sobre os medicamentos mais baratos; as que se limitam a “aviar” a receita sem fornecerem qualquer informação; as que se recusam a trocar marcas de medicamentos, mesmo quando o médico autorizou; as que trocam medicamentos mesmo quando o médico não autorizou; e, mais frequentemente, as que dizem, sistematicamente, que não têm “daquela marca” que o médico receitou (o mais barato) mas têm uma outra que é só uns “cêntimozinhos” mais cara!

Todo este percurso é complexo demais, é longo demais, é dificil demais para quem o resto da vida já tem muitos percalços e para quem a crise começou já há muitos anos atrás. A escolha sobre como queremos que vivam os mais vulneráveis entre nós será sempre uma escolha de sociedade: ou a predação ou a solidariedade.

Sobre o/a autor(a)

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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