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A nova União Europeia
Todos temos tomado conhecimento através dos meios de comunicação social de algumas notícias invulgares provenientes da Alemanha. Notícias como a Alemanha ter levado a UE a exigir o depósito prévio dos orçamentos dos Estados-membros; a Alemanha pensar em retirar o direito de voto aos Estados que não cumpram as regras de estabilidade do euro, e agora, até em relação a Portugal, a Alemanha recomendar que o país se esforce ainda mais nas suas medidas de austeridade.
Ora, de facto não se pode negar este novo posicionamento que a Alemanha está a assumir no quadro da UE. E o ponto é que, sempre que estão em causa questões económicas, fica-se como que predisposto a aceitar as afirmações e orientações alemãs como dogmas na matéria: afinal sempre se trata do país que foi capaz de sair do nada, posterior à Segunda Guerra Mundial, e chegar à prosperidade actual através de um “milagre” económico.
Por isso, talvez não seja inútil relembrar um pouco o que foi esse milagre. E nunca é demais recordar que ele só começou por ser possível graças à ajuda financeira dos Estados Unidos para a reconstrução. No entanto, para além desta situação, há outra, que é talvez menos conhecida, e que importa referir. Citando Naomi Klein, no fim da guerra a economia alemã estava arruinada e ameaçava arrastar toda a Europa Ocidental para o abismo. Além disto havia tantos alemães que se sentiam inclinados para o socialismo que o governo dos Estados Unidos preferiu antes aceitar a divisão da Alemanha do que perder todo o país. E assim, na Alemanha Ocidental, o governo americano construiu através do plano Marshall um sistema capitalista que estava pensado não só para criar rapidamente e sem problemas novos mercados para a Ford e a Sears, mas também para que dele resultasse um tal sucesso, que a economia da Europa prosperasse e o comunismo perdesse a sua atractividade.
Isto significou que em 1949 foram toleradas todas as medidas políticas possíveis ao governo da Alemanha Ocidental, e que eram medidas que de capitalista nada tinham: criação de novos postos de trabalho pelo Estado, investimentos gigantescos no sector público, subvenções para as empresas alemãs e apoio a sindicatos fortes.
Mas, e como refere ainda Naomi Klein, houve ainda mais uma medida, que na Rússia dos anos 90 ou no Iraque ocupado teria sido perfeitamente impensável: o governo americano impôs à sua própria indústria uma proibição provisória do investimento estrangeiro, para que as empresas alemãs abaladas pela guerra não fossem obrigadas a entrar na luta concorrencial antes de se terem recuperado. Segundo a autora de um livro sobre a história do plano Marshall, Carolyn Eisenberg, citada por Naomi Klein, argumentava-se mesmo que deixar entrar empresas estrangeiras na Alemanha nessa altura seria o mesmo que pirataria.1
Ora então pensemos: se nos derem todo o dinheiro que precisamos, se nos deixarem implementar todas as medidas políticas e económicas necessárias ao crescimento, incluindo medidas socialistas numa economia que se quer capitalista, se tivermos um gigante político empenhado em apoiar-nos e que considera o nosso crescimento e o nosso elevado nível de prosperidade como parte decisiva da tutela dos seus próprios interesses geo-estratégicos e que para tal vai ao ponto de não permitir às suas próprias empresas que nos façam concorrência, então onde está o “milagre”? Quem conhece o poder da indústria americana e sabe como as multinacionais defendem os seus interesses, compreende que o “milagre alemão” nem é nenhum “milagre”, é obra da vontade política dos Estados Unidos.
Ora, é esta mesma vontade política que continua a impulsionar a Alemanha, mas agora no quadro da União Europeia. Não é nenhum segredo, e os pensadores da hegemonia americana escrevem abertamente sobre o tema, que os Estados Unidos pretendem e precisam de uma União Europeia coesa, que funcione como prolongamento e apoio do seu poder político e militar no continente europeu e como plataforma para a expansão dos interesses americanos em direcção ao leste, com vista ao alargamento da influência sobre o continente formado pela Europa e pela Ásia, a chamada Eurásia.
Para tal, os Estados Unidos necessitavam, por um lado, que a União Europeia fosse alargada a Leste: já em 1996 Samuel Huntington deixava claro na sua conhecida obra “The Clash of Civilizations” que para preservar a civilização europeia face ao declínio do poder ocidental, era no interesse dos Estados Unidos e dos países europeus que fossem incorporados na União Europeia e na Nato os estados ocidentais da Europa central, isto, é, os Estados Visegrado, (Hungria, República Checa, Eslováquia e Polónia), as repúblicas bálticas (Estónia, Letónia e Lituânia), a Eslovénia e a Croácia.2 Como, de facto, sucedeu, faltando apenas a adesão da Croácia à UE, mas cujas negociações estão em curso.
E por outro lado, os Estados Unidos precisam que o poder na União Europeia seja organizado à volta de poucos Estados. E também Huntington já tratava a Alemanha e a França como os estados-núcleo (the core states) da União Europeia,3 aqueles que teriam esta função de organização. Como de facto, e sobretudo com a aprovação do Tratado de Lisboa, está a suceder.
Quanto às finalidades desta construção, já em 1997 um antigo e influente conselheiro do Presidente Carter, Zbigniew Brzezinski, depois de considerar a Eurásia, o tabuleiro de xadrez político que se estende de Lisboa a Vladivostok, como o principal ganho geopolítico americano, dizia que para os Estados Unidos a questão central era a da construção de uma Europa com capacidade de subsistir sobre a base de uma parceria alemã-francesa, que continuasse aliada da América e pudesse aumentar a área em que vigorasse o sistema democrático de cooperação internacional, do qual estava estreitamente dependente a possibilidade de os Estados Unidos assumirem com toda a eficácia a sua posição de primazia global.4
Aquilo a que estamos a assistir na UE em 2010 é a concretização deste projecto de hegemonia global, já de há muito pensado e progressivamente concretizado, um passo após o outro. Aquelas medidas e exigências insólitas que nos vão chegando de Bruxelas são os ecos distantes de uma disputa do poder global, que tem como centro a posição dos Estados Unidos no mundo, como orientação o Leste da Europa e a Ásia, e na qual nós não somos chamados a pronunciar-nos.
Assim, dada a localização imediata dos interesses da UE no centro-norte e leste europeu, os estados do sul, já democratizados e estabilizados, perderam qualquer possível relevância para o novo poder político e passaram a ser considerados apenas como um custo, que se paga de má vontade, porque o interesse do poder é usar todos os meios financeiros europeus possíveis na estabilização das estruturas politicas, económicas e jurídicas nos novos países membros do leste europeu, como pedras de apoio indispensáveis na luta pela progressiva conquista de influência na Eurásia.
O caso da Grécia é, assim, paradigmático. Não é a questão da ajuda financeira ao país que mais incomoda os novos líderes europeus: basta lembrar que muitíssimo mais do que as ajudas à Grécia foi já gasto e continua a ser gasto na ”salvação” de bancos falidos. A questão é que na UE actual não faz sentido que se gaste no sul o dinheiro que se quer gastar no leste. E assim transformou-se o caso grego num arraial mediático, com a única finalidade de ganhar legitimidade para fazer exigências de austeridade a outros países, entre os quais, obviamente, a nós.
E, por último, ainda se utilizou o caso da Grécia para estender uma suspeita generalizada, e não concretizada, de falsificação potencial de contas públicas a outros países membros da União Europeia e a partir daí formular-se a exigência de inspecção dos respectivos orçamentos nacionais.
No entanto, e em relação a esta última consequência do caso, temos que admitir, caro leitor, que ficamos perplexos. Se os actuais dirigentes europeus resolveram duvidar de nós e querem examinar as contas públicas portuguesas, nós, pelo nosso lado, com toda a sinceridade confessamos que duvidamos da qualidade dos serviços a prestar por estes novos guarda-livros da União Europeia. E isto por um motivo: é que não abona muito a favor da inteligência deles terem, e segundo o que os próprios dizem, andado tantos anos a ser enganados pelas habilidades do governo grego na apresentação das contas do Estado, sem nunca darem pelo engano.
João Alexandrino Fernandes
1 Naomi Klein, The Schock Doctrine. The Rise of Disaster Capitalism, citado aqui na edição alemã, Die Schock Strategie – Der Aufstieg des Katastrophen-Kapitalismus, Frankfurt am Main, 2007, P. 348-349;
2 Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, paperback, New York et al., 2003, p. 311-312.
3 Samuel Huntington, The Clash of Civilizations and the Remaking of World Order, paperback, New York et al., 2003, p. 156-157
4 Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard. American Primary and Ist Geostrategic Imperatives, aqui na edição alemã Die Einzige Weltmacht – Amerikas Strategie der Vorherrschaft, Frankfurt am Main, 8. Auflage, 2004, p. 53, 58 e 109.
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