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O fim das SCUT: quem fez as contas?

Aceite a utilização do princípio do utilizador-pagador, está aberto caminho, do ponto de vista ideológico, para que todos os serviços públicos fiquem sujeitos ao pagamento pelos seus “utilizadores”.

Se e quando as SCUT passarem a ter portagem real em vez de virtual, o PSD e o CDS vão dizer que alcançaram uma das mais importantes vitórias ideológicas dos últimos anos. E é verdade, mas como noutras ocasiões, uma vitória ideológica de certos partidos acaba por ser uma derrota para o país. E neste caso, ironia das ironias, será o governo do PS que em completa anemia política e de joelhos perante as propostas neoliberais do PSD irá, como criador, destruir a sua criação.

O fim das três SCUT Costa de Prata, Grande Porto e Norte Litoral, no total de 276 kms, não tem qualquer racionalidade económica e social.

Diz-se que os encargos anuais com as concessões rodoviárias são de 700 milhões de euros. É preciso ser rigoroso. Em 2009 os encargos foram de 647,9 milhões de euros, mas este montante não é apenas de concessões de SCUT, inclui por exemplo, a Lusoponte (travessia sobre o rio Tejo) ainda do tempo do governo de Cavaco Silva. Em 2010 os encargos totais serão de 382,7 milhões, em 2011 serão 532 milhões, em 2012 serão 334,9 milhões e em 2013 serão 320,8 milhões de euros (in Relatório OE2010- Situação Financeira das Administrações Públicas – pag. 205).

No entanto, os encargos em 2009 das três SCUT Costa de Prata, Grande Porto e Norte Litoral foram de 194,5 milhões, menos de 1/3 dos 647,9 milhões de euros (in Relatório de 2010 – Parcerias Público Privadas e Concessões – DGTesouro e Finanças- pag. 9).

Para 2011, com o fim das SCUT, a Estradas de Portugal prevê de receita cobrada em todas as sete existentes a verba de 130 milhões, face a encargos totais com as concessões de 532 milhões de euros. Mas qual será a receita a obter das portagens a introduzir nas três SCUT Costa de Prata, Grande Porto e Norte Litoral ? Vinte, trinta milhões de euros? E onde estão as contas feitas pelos defensores do fim das SCUT sobre o impacto mais global do pagamento de portagens, por exemplo na A28 ou na A29 ou na A41 ? Atente-se nas seguintes três situações:

1 - Portugal exporta mais para a Galiza do que para os Estados Unidos da América. Qual vai ser o impacto nessas exportações da introdução de portagens nas vias rodoviárias de expedição para a Galiza ?

2 – 400.000 passageiros/ano do Aeroporto do Porto são provenientes do sul da Galiza.

Qual vai ser o impacto da introdução das portagens na A28, sabendo que estes passageiros quase só utilizam o modo rodoviário, até porque a deslocação por ferrovia entre Vigo e Porto-Campanhã demora umas incríveis três horas e quinze minutos ?

3 – Entre 2000 e 2007 o número de mortes por acidentes rodoviários baixou para metade – de 1.877 para 974 mortos. Mas os custos da sinistralidade rodoviária continuam a ser superiores a 4 mil milhões de euros/ano.

Sabendo que a principal razão para essa diminuição foi a construção de 918 kms de SCUT e não, como deveria ser, a condução mais cuidada dos automobilistas, qual o efeito na sinistralidade rodoviária de empurrar veículos para estradas nacionais/municipais inseguras como a EN 13 ? Quantos mortos vai causar o dogma neoliberal de acabar com as SCUT ? Quais os custos que decorrerão do agravamento da sinistralidade rodoviária ?

Quem fez contas às implicações sócio-económico-financeiras da decisão política de extinguir as SCUT ? Os trezentos ou quinhentos ou setecentos milhões de euros/ano de encargos com as concessões rodoviárias são o “buraco” nas contas públicas? E que dizer então dos dois mil milhões de euros/ano de benefícios fiscais (despesa pública nos Orçamentos do Estado) só na zona franca da Madeira? Ou, doutra forma, há quem olhe para tostões e esqueça milhões.

Mas há ainda um outro ponto a considerar: invocar o princípio do utilizador-pagador para acabar com as SCUT é também uma forma de corrupção deste princípio jurídico-ambiental-social.

O princípio do utilizador-pagador (PU-P) defende que os recursos naturais devem estar sujeitos à aplicação de instrumentos económicos para que o seu aproveitamento se processe em benefício da colectividade. O PU-P passou a ser defendido pela OCDE em meados dos anos 80 para que fosse pago todo o uso privativo de um recurso ambiental de natureza pública. Tendo sido pensado para a utilização de recursos ambientais, a que propósito é que PSD, CDS e o governo PS invocam este princípio para justificar o fim das SCUT?

A razão parece óbvia: aceite a utilização do princípio do utilizador-pagador fora da área ambiental para a qual foi criado, está aberto caminho, do ponto de vista ideológico, para que toda a prestação pública, todos os serviços públicos, da saúde à educação, fiquem sujeitos ao pagamento pelos seus “utilizadores”.

Mas poder-se-á, com verdade, dizer que os utilizadores/beneficiários duma A28 são os condutores das viaturas? Os beneficiários da A28 não serão também os empresários que a utilizam para exportar, a tempo e horas e com segurança, os seus produtos ? Os beneficiários da A28 não serão também os trabalhadores que a utilizam para chegar a tempo e em segurança aos seus locais de trabalho? E não serão também os estudantes que a utilizam para se deslocarem aos estabelecimentos de ensino ? Não serão também as regiões Norte e Centro, a economia, todo o país, a beneficiar com uma A28 como SCUT?

É certo que quanto às sete SCUT existentes, no total de 918 kms, até o Tribunal de Contas no seu Relatório nº 14/03 concluiu que “o lançamento deste programa de concessões não foi precedido de uma avaliação sobre a sua economia, eficiência e eficácia, face ao modelo tradicional, de empreitada de obra pública” e que “o processo de contratação pública evidenciou falhas graves em matéria de transparência …” e ainda que “contrariando de novo as boas práticas internacionais …, o governo lançou estes concursos sem corredores ambientais previamente aprovados, descurando assim, de facto, os custos adicionais resultantes dos subsequentes reequilíbrios financeiros”.

E como Portugal, com 280kms de AE por milhão de habitantes e 33kms de AE por 1.000 km2 se tornou “o país das auto-estradas”, ocupando o top europeu, há até quem defenda a portagem real nas SCUT em substituição da portagem virtual. Mas com base no princípio do utilizador-pagador (PU-P), não será de aceitar, nunca.

Inventem mentiras novas.

Sobre o/a autor(a)

Jurista. Membro da Concelhia do Porto do Bloco de Esquerda
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