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Passos pressentidos

Têm o culto do poder. Cada ministério uma igreja, cada subsecretaria de estado uma capela, cada cargo uma benesse, cada função um privilégio.

Querem chegar ao poder, como se este fosse a pátria donde foram exilados, o torrão que lhes dá alento. O poder contém já a miragem do futuro, a matriz em que naturalmente se inserem e inscrevem, o ventre em que foram paridos com as delícias próprias dos paraísos reconquistados, leite e mel a aromatizarem a chegada. E fel.

Anseiam pelo beija-mão das tomadas de posse, não só das formais mas também das outras, em que se imaginam candidatos a cargos, benefícios, protecções, contratos, subsídios, tudo num novelo que se vai desenrolando, uma espécie de oxigénio purificado, familiar, como o cheiro a bolo que aromatiza a casa.

No poder sentem-se como em casa da avó, cheios de mimo e de mando, de festas e bibes novos, a casa em que bastava dizer “eu quero” e se cumpria o desejo, dispensando-se birras.

Têm, pois, o culto do poder. Cada ministério uma igreja, cada subsecretaria de estado uma capela, cada cargo uma benesse, cada função um privilégio. Esta fé, este estremecimento, esta vocação para o comando, faz muitos e variados milagres, ou seja, pode transformar instantaneamente uma criatura vulgar num ministro, ou qualquer outra coisa parecida.

No desnorte que foi o último governo da direita, há criaturas que foram ministros e ministras de pastas que albergavam matérias sobre as quais não tinham a mais pequena noção do que quer que fosse. As próprias pastas olhavam para eles e elas, hostis e magoadas, como um doente que desconfia do médico que lhe parece um charlatão. Pressentiram o ludibrio.

Depois saíram e deram o lugar a outros, fabricados na mesma linha de montagem.

Neste preciso momento estão em impaciente expectativa. O tempo nunca mais passa até à chegada do poder. Sonham com sondagens. O coração bate de cada vez que os resultados aparecem. Quando sobem babam-se com os números, antevendo o futuro com optimismo e o coração pacificado. Os mais místicos fazem promessas e preces incandescentes ao seu Deus, que já deve estar fartíssimo de os ouvir na secretaria das intimidades e desejos inconfessáveis. Agarram-se-lhe às vestes impecáveis, engelhando-as. Põem um ar humilde de pecadores bonzinhos, e juram que se o futuro lhes sorrir, hão-de ser melhores. Santos mesmo.

Consta para aí que este Deus particular do PSD só consegue sair à rua com óculos escuros para não ser reconhecido, tal o jorro de pedinchices que lhe são feitas.

Estes sacerdotes do poder têm a pose exagerada do actor convicto.

São os novos pregadores televisivos. Encharcam os telejornais de conclusões, as frases vestidas de fatos respeitáveis, cabelos curtos e porte cuidado. Preparam-nos os ouvidos para a entrada do novo pensamento, um novo pensamento velho e inabitável, preparam-nos para a vitória da doutrina, única e global, lógica e inatacável. Preparam-nos, em síntese, o cachaço para um golpe seco, com constituição e tudo.

Inviáveis as políticas prosseguem.

A perversidade de tudo isto é que os que atleticamente se ajeitam para chegar, prometem ser piores que os anteriores, e mesmo assim são escutados.

Até um dia.

Sobre o/a autor(a)

Advogada, dirigente do Bloco de Esquerda. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990
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